Há esse velho gritando histericamente aqui na cafeteria. Chamando atenção, chacoalhando os braços, jogando seu chapéu de pescador no chão. Exige que o garçom lhe reembolse o tempo perdido com um café de cevada profanado pelo cadáver de uma mosca azul boiando. Aponta para o próprio rosto, tem um olho de vidro e sobrancelhas transparentes. Enlouquece a todos nós. Diz que lutou na guerra, rastejou por trincheiras, dividiu a carne dos inimigos numa fogueira com ratos maiores que seu fêmur, pendurou-se na ponta de um General Sherman como fazem as crianças na beira de um trampolim. Diz que poderia proteger Pearl Harbor só com um canivete, poderia ferrar com o Japão inteiro se quisesse — mas só quer o que pagou por um maldito café de cevada.
Esqueça Enola Gay, filho, eu posso acabar com o leste da Ásia segurando somente uma espingarda de caça calibre 12...
Por esse ângulo, senhor Van Kirk versão esquizofrenia paranóide, eu discordo. Uma ventania um pouco mais violenta, vinda do sul desde o Uruguai, é capaz de extingui-lo sem dificuldade, como se fosse nada além de uma fumaça magra de biribinha na sarjeta.
O garçom baixinho enverga as costas enquanto encara os próprios pés. Há pelo menos seis variantes de descontentamento explodindo entre suas retinas e canelas. Deve ter uns dezessete anos, se tanto, e descoberto sobre a Segunda Guerra na semana passada. Só quer ouvir o sino da igreja anunciar às seis da tarde e ir embora, fazer qualquer coisa na solidão de seu quarto mofado.
Qualquer coisa, inclusive nenhuma.
De alguma maneira, ele me faz lembrar da época que trabalhei numa dessas lanchonetes terríveis. Era a punição de Sísifo. O expediente se arrastava pelos ponteiros sempre atrasados na parede amarelada, as horas realçavam a grosseria dos clientes amargurados. Tudo era motivo pra não pagar a conta, as pessoas em suas barrigas cheias, palitando os dentes fartos, sempre arrumam absurdos onde há apenas a pura conveniência rotineira.
Em todo caso, a parte supostamente aceitável era que você podia beber o café da máquina italiana sem que o gerente visse, e os biscoitos ao redor das fezes de ratos eram de graça para os empregados. E também, na parte dos fundos, entre pausas extensas de "cinco minutos" pra ir ao banheiro, eu acendia um cigarro e fumava com um dos pés na parede, imaginando como devia ser a vida bem distante daquela realidade grotesca, como seria estar na pele de Jim Stark reluzindo numa jaqueta de motoqueiro doido pela cidade. A reprodução mais próxima de felicidade que eu conhecia. O cheiro de escapamento e esgoto entupido e os fios elétricos enrolados acima das nossas cabeças, aprisionando rabiolas de pipas distraídas, eram o enfeite mais eletrizante do expediente inteiro, a única distração daquele labirinto social. Deixava minha visão hipnotizada por desejos de ganância inatingíveis, uma espécie de liberdade psicótica, e as migalhas de bolachas com prazo de validade vencido ficavam eternizadas nas calças remendadas. Os sapatos estalavam como se tivessem costelas porque o salário não dava pra Nike Air, e você tinha que colocar pedaços de papelão no lugar das palmilhas esfareladas de suor se quisesse pisar macio.
A economia era uma piada, hahaha!, mas só riam os que podiam rir. Eu não. Porque eu não tinha o que era necessário para entendê-la — tempo livre. Estava ocupado tentando sobreviver. Não se falava sobre essas trivialidades no trabalho ou no bar, essas baboseiras com nomes complicados — contenção, infração crônica, déficit na distribuição per-capita — porque não conhecíamos os defeitos que nos tornavam pobres. Sabíamos que éramos e isso bastava. Os canais na televisão tinham jornais sensacionalistas e programas com efeito de distanásia, e assistíamos até que o cérebro sofresse atrofiamento e a saliva, vazando pela boca, lembrasse um cartão postal com a Cachoeira da Ferroeste.
Os chefes, ao contrário do que possa parecer, não eram ricos, mas também não eram miseráveis — somente repugnantes. Estavam longe do topo, porém num nível acima de nós. Conseguiam pagar metade das sessenta e duas parcelas do carro seminovo ano 77, e atrasavam o aluguel num bairro suburbano onde um guardinha de motoca buzinava durante a madrugada, fingindo proteger as propriedades de madeirite. Tinham tevês de vinte polegadas, lanchonetes precárias e cigarros Continental. Parecia um bom jeito de viver.
Enquanto isso, os ricos de verdade, os que riam com hahaha!, os que tinham tempo para a economia, os que sentavam as traseiras magnificentes em poltronas de couro legítimo, os que atendiam apenas quando chamados de V. Ex.ª, os que tomavam uísque envelhecido na Escócia e inventavam termos como remodelamento no cálculo da correção monetária para alteração na sistemática do investimento pecuniário, e diziam a frase inteira sem gaguejar, estes sim determinavam o nosso destino, jogavam com nossas vidas de plástico como fazem os bebês aos chocalhos. Não eram os vilões simplesmente por desejarem nossa morte, mas por não querer que vivêssemos tão bem quanto eles.
Eu os odiava. A todos.
Odiava Vossa Excelência e seus termos econômicos que não querem dizer nada. Odiava os repugnantes e suas parcelas do carro que já não era mais novo há uma década. Odiava os que colocavam papelão nos sapatos e seus sonhos inatingíveis de grandeza. Odiava aquela espelunca. Odiava a mim mesmo. No fundo, até compreendia que era uma fase difícil pra humanidade desde que alguém resolveu dizer "Haja luz", e houve luz. Mas alguns dias eram simplesmente insuportáveis porque as pessoas que iam na lanchonete estavam bravas a todo momento, irritadas com sua própria existência. Elas não se entendiam, não viam saída para aquele atolamento de fossa que afundava suas cabeças na merda. Não queriam voltar pra casa e ter que olhar na cara de seus filhos raquíticos, ver as clavículas saltadas e as ancas túmidas de fome. A geladeira colecionava mais vazios que a somatória da esperança de todos nós e a única fartura era de contas empilhadas no balcão da cozinha. Por isso, caminhavam debaixo dos fios de eletricidade embolados e vinham descontar sua frustração mecânica na lanchonete. Traziam suas moscas, suas esquizofrenias, seus chapéus de pescador e seus olhos de vidros. Não tinham muita saúde, mas os pulmões eram de aço pra fazer histeria.
Esses clientes em especial, essa gente insolente e perdida, tentava dar calote onde pudesse. Seus braços chacoalhavam pra cima, exigindo despautérios, apontando falhas em lugares concretos. Como se eu também não tivesse faminto e desesperado e perdido e irritado, como se minhas moscas valessem menos, como se minhas clavículas se escondessem debaixo de carnes espessas, como se minhas ancas não furassem o tecido da calça. Como se eu não estivesse tão irado com a vida quanto eles.
Eu os odiava. Eles me odiavam de volta.
E agora há esse velho gritando na cafeteria.
Decidi me levantar, ir embora. Algumas lembranças não valem o chá de hortelã com pão na chapa.
E o mundo seguirá seu curso. Moscas azuis continuarão sendo assassinadas em cafés de cevada. O garçom voltará pra sua casa segurando seu ódio contra o mundo nas bochechas pálidas até que descubra se alguns anos na cadeia valem o réu primário. Os clientes caminharão debaixo dos fios de eletricidade e verão seus filhos espichar para a idade onde, finalmente, poderão ser funcionários humilhados em cafeterias. O cheiro do escapamento e o esgoto entupido permanecerá intacto. Em pouco tempo, todos serão velhos cansados, cansando outros jovens que fumam nos fundos com o pé na parede e comem biscoitos vencidos.
Sempre haverá um louco de olho de vidro pra um sujeito de costas envergadas. E eles sempre conseguem o reembolso. Ninguém pode explicar, mas eles conseguem. Gritam e expurgam a raiva, fazem outros de mosca. É um ciclo vicioso: gente desesperada desespera a gente. E a gente desespera os seguintes até que o apocalipse decida aparecer por entre os arranha-céus ou até que consigamos chegar ao ponto de rir com hahaha! e ganhar o tratamento de Vossa Excelência.
Se esse dia chegar, se eu tiver uísque escocês e um traseiro magnificente, se eu entender um termo econômico e conseguir falá-lo sem gaguejar, que o mundo se prepare porque eu vou ter, então, meu próprio criadouro de moscas e razão, muita razão.
Vou ter razão até se ferrar com todo o Japão.
જ—minhas notas—७
valeu pra quem chegou até aqui!
a arte da capa não me pertence, peguei no DeviantArt, é de aceofskies, apenas deixei em preto e branco.
só isso mesmo.
meu discord: brakence#5599
insta: kozmicpunk2
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baseado em descasos reais
Short StoryEu era um sobrevivente, sim, muito trabalhador, sim, claro que sim, claro. E o sol estava lá, brilhando como se a vida não fosse uma arena de gladiadores desesperados, encharcada de sangue, encarando o fundo dos nossos olhos patéticos, roendo os oss...