Eu estava pobre e desamparado e tratava a mim mesmo como um pobre e desamparado.
Usava o fracasso pra justificar a maioria das minhas ações que, convenhamos, nunca deixaram de ser completamente duvidosas, e, pelas manhãs, as garras da ressaca apertavam meu pescoço até que o próximo porre viesse e eu perdesse boa parte da consciência no chão do quarto, rodeado de posteres de bandas de glam metal e filmes do Chaplin. De alguma maneira inexplicável, eu continuava comprando vinho sabendo que passei a odiar essa porcaria.
Me sentei no parapeito do topo de um prédio da Sé onde você poderia tranquilamente acessar através das escadas de emergência — se acertasse a marca favorita de cerveja do porteiro noturno que cumpre horário dia sim, dia não — e acendi um Chesterfield. As pessoas lá embaixo se equilibravam nos ombros uns dos outros, bêbados de alguma coisa que eu não tinha nem sabia o que era, mas que se parecia muito com a felicidade momentânea acompanhada de cachaça. Suas sombras eram engolidas pela neblina urbana de início de noite e eu desejava que morressem.
Tanta gente se perdendo no vazio de tanta gente perdida por estar vazia, e eu ali, alimentando minhas condolências, minha autocomiseração, com a porcaria de um vinho que eu sequer gostava.
Era uma sexta comum. Só que chovia como se o céu tivesse com ódio do asfalto e arrebentasse vários chicotes de couro nas costas dos que se dispunham a caminhar pela longa — cheia de buracos e quase encantadora através da luz da rua — praça da Sé.
De repente, no parapeito, meio sóbrio, meio insano, meio suicida, meio homicida, tomando o vinho pelo gargalo e insustentavelmente solitário, senti como se meu corpo não fosse meu. Por um pequeno momento de epifania, por um segundo rápido de sabedoria divina, foi como se minha consciência tivesse se tornado uma hóspede na minha própria cabeça. Eu poderia ser qualquer coisa — menos eu mesmo. Era assustador ter ciência da minha existência e a constatação material dessa ideia foi mais confusa que a descrição. As mãos eram minhas, os dedos eram meus, mas era tudo tão terrivelmente estranho... e aquele corpo pesado era um visitante, somente um visitante desconhecido. Nada era meu, enquanto eu tinha percepção de tudo.
Então pensei em pular de lá de cima. Não seria suicídio se a alma não fosse minha e as paradas todas naquela pele fossem de outra pessoa.
Pensei deus, eu tô vivo, eu sou isso aqui... por quê? e constatei minha loucura. Olhei para as ruas, o coração desesperado procurando um único motivo pra me manter seguro, sustentado pelo fio transparente que era a vida confusa. Respostas para perguntas que eu sequer saberia formular nunca chegariam até mim. Estava pobre e desamparado e tive dó de mim mesmo. Pena de olhar pras minhas pernas suspensas na gravidade. Estava com fome e descapitalizado. Vinte reais descansavam no bolso, eram migalhas que sobraram de alguma trapaça e que provavelmente sumiriam na venda mais próxima em troca de cervejas ou rum, cigarros, maconha e vinho — e eu não conseguia mais aturar o gosto do vinho. A bomba de asma dava os últimos suspiros, eu não tinha mais receitas fraudadas. Eu era aquilo. Aquele corpo. E eu, seja lá o que fosse, estava horrivelmente vivo e consciente e aquelas pernas e os dedos e as mãos... era tudo meu...
Bem, o que eu posso dizer?, eram tempos fartos! — Fartos de miséria, depressão, desesperança e a mais louca das confusões.
Então ouvi batidas na porta de aço de emergência. Porta corta-fogo. Batidas determinadas. Direcionadas. Fiquei em completo silêncio. Chamei por Deus segundos antes, mas não esperava que ele aparecesse tão rápido e pessoalmente. Torci pra quem quer que fosse, desse o fora.
Sei que tenho pedido sua ajuda, Santo Deus, sei que tenho dito seu nome em voz alta quando penso em morrer — sei que tenho pensado em morrer mais vezes do que deveria também —, mas não é como se eu esperasse que o Senhor viesse em pessoa me defender de cometer um pecado. Nós dois sabemos que eu nunca me mataria porque a única coisa que vence minha falta de esperança, é a preguiça e o orgulho, e, sejamos sinceros, esses dois detalhes são pecados muito piores que despencar do topo de um prédio.
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baseado em descasos reais
Short StoryEu era um sobrevivente, sim, muito trabalhador, sim, claro que sim, claro. E o sol estava lá, brilhando como se a vida não fosse uma arena de gladiadores desesperados, encharcada de sangue, encarando o fundo dos nossos olhos patéticos, roendo os oss...