II. o segredo escondido na Casa dos Palhaços

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Fui até o Viking Park assim que recebi o bilhete. Já estava quinze minutos atrasado e mal tive tempo de passar gel nos cabelos antes de sair. Callie Calisto queria me revelar um segredo na frente da Casa dos Palhaços antes de irmos até a garagem da sua casa ouvir o novo disco dos Dead Kennedys que ela conseguiu na loja do Toni. O parque era caminho pra parte oeste da cidade onde ela morava, e nós gostávamos da brisa do lugar no cair da tarde. Era quase uma poesia declamada de T. S. Eliot regada de falta de talento pra socializar o suficiente. Os gritos das crianças era sempre um vigor de vida a mais e quando os palhaços saiam correndo de dentro da Casa a gente aproveitava a confusão pra roubar uns cigarros e moedas.

Callie Calisto era uma loucura. Fatalmente esquisita com aquela maquiagem deixando seus olhos acinzentados lotados de uma raiva maquiavélica e a boca parecida com a de um cadáver — tão pálida que era. Não era uma garota bonita, pelo contrário, era do time dos excluídos também e isso tornava a parada toda mais intensa entre a gente. Três invernos mais velha que eu, três primaveras mais degenerada. Escondia-se em moletons enormes e calças jeans gigantes. Seu rosto tinha o formato exato de um ovo caipira vindo do rabo de uma galinha insatisfeita com a granja. O queixo fino, a testa larga. Ela tinha a voz de um trovão desafinando que desiste de amedrontar uma cidade, e quando ria fazia meu peito roncar de nervosismo.

Era o último ano de Callie no colégio. Em algumas semanas ela voltaria pra Grécia, seu país de origem, para morar com o pai e fazer o curso de medicina com alguma qualidade — era o que dizia, eu duvidava. Calisto, a porcaria de uma ateniense da gema, se é que isso existe. Filha de gregos e neta de gregos e bisneta de gregos e que seja o resto da ascendência. No entanto, há catorze anos sua mãe se apaixonava por um gaúcho turista, dono de uma imensa fazenda de café em Campinas, e decidia largar o marido e a família puramente estrangeira pra viver uma aventura tupinambá no interior paulista.

Ela não era o meu tipo. Tava longe de ser. Mas tinha um papo bom, um gosto musical incrível e era o clichê literal de garota mais velha, excluída, que não se importava com a companhia de um idiota derrotado e esquisito porque não havia mais ninguém pra conversar e, afinal, perderia o quê?

Talvez, um dia, ela pudesse me amar. Talvez fosse a única. Algumas pessoas não nasceram pra provar o amor, Jack, ela me dizia, baforando a bituca de um cigarro roubado, falando de si mesma.

Bem.

Eu caminhava já nas portas da Casa dos Palhaços sob a abençoada luz vespertina do sol sensato, imaginando cenas censuradas com Callie e assobiando o solo de guitarra recente do Judas Priest. Não sabia se a desejava ou se era uma relação de irmandade, e me questionava acerca de um possível complexo de Édipo quando me deparei com o cano de uma pistola na minha testa. Uma garota de longos cabelos escuros me abordou na porta, barrando minha entrada. Sua cabeça tremia toda vez que ela piscava. Tinha as pernas pra fora de uma saia quadriculada, calçava um salto pequeno e seus olhos eram um par de gramas verdejantes lotados de raiva. Na ponta do revólver, o indicador no gatilho estava firme.

— Lembra de mim, Jack? — perguntou, furiosa.

É estranho o quanto as pessoas temem a morte quando finalmente estão de frente à ela.

— Claro que sim — respondi, não lembrando.

— Então qual é o meu nome?

— Olha, eu sou terrível com nomes... — sorri no ápice do nervosismo, sem saber se era uma arma de brinquedo ou se podia verter minha testa em carne moída. Provavelmente poderia.

Já tinha me metido em diversas confusões antes só que nenhuma incluía armas de fogo, o que significava uma avanço de importância ou possível retrocesso de caráter.

Naquela época, eu era um filho da mãe que fumava maconha demais e perdia as aulas com conhaque furtado do bar do pai de um amigo, às vezes dava um cheiro em coca, vivia de brisa. E eu não fazia ideia de quem era — ela ou eu.

A arma arranhava o espaço entre minhas sobrancelhas. Estava gelada, hesitante. Ela não tinha certeza do que fazia mas claramente era a dona da razão.

— Escuta, boneca, ele não vale a pena, não faça isso — disse Callie, surgindo de dentro da Casa dos Palhaços. Ela acendia um cigarro e encarava a menina por cima da chama como se a cena fosse a mais comum. Tinha alguma classe, claro, mas sua aparência ainda era estranha e as calças largas demais. — Tudo o que ele precisa é que uma garota bonita o mate pra que seu último fôlego seja um ato que vai lustrar o ego. Ele já é um narcisista nato, não dê a ele o que ele quer. Ele não merece seu ódio.

Toda a soberania grega de Calisto me esmagava e ela nem me deu o ar da graça. Parou do meu lado, tragando o cigarro com cheiro de cereja e carbono, soltou a fumaça e sorriu para a garota. Somente pra ela.

— Ele sequer lembra o meu nome, cara — disse a maluca.

— Eu sei, eu sei. Ele é clichê... Homens, não servem pra inovar, repetem o mesmo erro com todas. Se você for capaz de superar um, nunca será vítima de outro. Além do mais, cê tá sofrendo por um cara perdido. A maior vingança que você pode entregar a ele é dá-lo a oportunidade de uma vida longa — Calisto pendeu todo o seu peso numa perna só, apoiou o cotovelo na cintura e apertou os olhos para dar ênfase ao seu semblante de juíza. A fumaça do cigarro criava silhuetas secretas no ambiente, ela gostava do efeito especial — acredite — continuou — ele sozinho vai estragar tudo.

Olhei para Calisto, um tanto ofendido.

— Foda-se, ele partiu meu coração — a arma fez um clique suspeito — por isso eu vou explodir o dele na bala.

Ergui minhas mãos, aquilo soou determinado demais.

— Bem, que seja — Callie encarou o cigarro entre seus dedos, despreocupada — vai ser um péssimo uso pra matéria prima desse projétil.

— Escuta aqui, sua filha da puta — pestanejei, apontando o indicador na direção de Callie.

Ela me fuzilou como quem diz fica na sua, só tô te ajudando. As sobrancelhas disformes se franziram, me censurando.

— Nós passamos uma noite juntos, ele tirou minha virgindade e disse que fui a melhor de todas, ele ia me escrever um poema! — O cano do revólver, desta vez, encostou na minha garganta — agora ele sequer lembra meu nome...

— Ai, ai... típico — Callie riu, como se isso acontecesse muito consigo mesmo.— Ele não vale seus próximos dez anos em cana, gata. Tem gente o suficiente nesse parque pra testemunhar contra você e, acredite, a polícia não vai querer saber se você tava tristinha por conta de um hímen rompido. Olha só pra ele, você acha que ele não vai acabar se matando sozinho?

Por um instante, desejei que a garota atirasse. Torci pra que atirasse.

Ouvindo Callie, ela abaixou a arma, sua cabeça trêmula se fincou no pescoço, os dentes prestaram continência a bandeira. Tem razão, sussurrou, coçando o queixo com a ponta da pistola. As pessoas ao redor não se importavam, continuavam transitando pelo Parque Viking sem notar nossa existência, nossa mágoa, nossa vida que se desenvolvia em momentos caóticos. Por aquele ângulo, eu duvidei que alguém reparasse na minha suposta morte.

De qualquer maneira, eu precisava parar de me meter com as filhas dos figurões. Talvez de cheirar cocaína também. Quem sabe frequentar mais aulas, principalmente as de defesa pessoal.

— Obrigada — disse a garota, virando as costas e saindo da mesma maneira que faria um morto-vivo em solo brasileiro.

Conferindo a integridade das minhas calças e caminhando para dentro da Casa dos Palhaços atrás da sombra de Callie que largou a bituca ao lado de uma barraca de quepe, descobri que ela nunca me amaria.

Alguém que te conhece o suficiente pra saber que não vale a pena te matar, que uma vida longa é vingança o suficiente, não é alguém que vá te amar. Bem, pensei, algumas pessoas não foram feitas pra serem amadas. Eu não merecia morrer pelo tiro de uma menina apaixonada e sabia disso. O problema era outra pessoa saber.

Callie nunca me amaria.

Esse era o segredo escondido na Casa dos Palhaços.

baseado em descasos reaisOnde histórias criam vida. Descubra agora