Cobras e Lagartos

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— Valéria, ajuda aqui a mãe com estas caixas, se fazes favor.

— Está bem — disse Valéria, ao descer as escadas.

Desmontaram as caixas das mudanças a achataram-nas. No fim, Carminho passou uma corda, colocando-as à porta da entrada.

— Pronto. Finalmente, depois de dois dias está tudo feito — Suspirou de mãos à cintura e um sorriso no rosto.

— Mas e o quarto da avó Guilhermina?

— Por enquanto deixamos como está, um dia destes eu dou uma limpeza geral.

Carminho encaminhou-se para a sala e deixou-se cair no sofá, estendendo as pernas sobre a mesa à frente. Valéria deu a volta à mesa e sentou-se na ponta do sofá, ao lado da mãe, de mãos no joelhos e olhos no chão.

— Que se passa? Eu conheço-te, sei quando estás a matutar em qualquer coisa.

Valéria soltou um meio sorriso.

— Mamã, porque é que eu nunca conheci a avó Guilhermina?

Carminho preparou a garganta e endireitou-se no sofá, pegando nas mãos da filha.

— Já te contei que o teu pai desapareceu no dia em que nasceste — Valéria assentiu com a cabeça. — Eu estava doida de preocupação, queria ir à polícia, mas a tua avó parecia não dar importância e quando reportei o desaparecimento, ela ficou muito aborrecida comigo. A partir daí a nossa relação nunca mais foi a mesma.

— Porquê?

— Sinceramente, não sei — passou a mão pela face de Valéria. — Ainda chegámos a vir visitá-la umas quantas vezes, quando eras bebé, mas parecia sempre que estávamos a incomodá-la, ela estava sempre a olhar para o relógio, para ver quando nos íamos embora. Às tantas, desisti e simplesmente deixei de vir.

— E nunca mais soubeste nada dela até agora?

— Eu continuei a enviar fotos tuas para ela, e ela enviou-te aquele peluche horrível que gostas tanto.

— O Serpentinas!

— Sim. Ela tornou-se uma eremita, não queria ninguém por perto. Acabou por falecer sozinha no hospital, coitada. A vizinha disse-me que ela já tinha perdido o juízo, só falava em maldições e criaturas mágicas.

— Gostava de a ter conhecido, antes de ela se ter ido embora.

— Eu sei querida, devia ter tentado mais vezes, mas a vida também não foi fácil para nós. Confesso, nunca pensei que nos deixasse esta casa, foi uma dádiva caída do céu. E assim, com o dinheiro da renda, a mãe agora pode investir num carrinho para não perder tanto tempo nos transportes e chegar mais cedo dos trabalhos.

— Gostei da escola nova. — Continuando a olhar para o chão.

— Eu também, e ser a cinco minutos a pé daqui, é a cereja no topo do bolo. Durante a semana podes ficar lá no CTL1 até eu chegar, mas aos fins-de-semana, não sei como iremos fazer.

— Mãe, já tenho oito anos. Porque não posso ficar sozinha? — Cruzou os braços ao peito.

— Eu sei, e estás habituada a viver num bairro difícil, mas mesmo sendo um bairro bom, eu preferia que estivesse aqui alguém contigo.

— Sério mãe, eu fecho tudo, até as janelas e não abro a porta a ninguém. Eu sou corajosa, não tenho medo de nada nem de ninguém.

— Vou pensar nisso... agora vamos mas é jantar. — Bateu as palmas. — Bora lá.

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