Capítulo 1

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1. Fugindo de casa


Vitória, quase menina, quase moça, morena, quase bonita, brilho enorme no olhar, seios pedindo para crescer.

Tinha apanhado tanto do padrasto que foi parar no pronto-socorro para dar uns pontos no braço. Já tinha desistido de ligar para a polícia e denunciar os maus tratos. O padrasto não ia mudar mesmo e a mãe não ia defendê-la nunca, porque também tinha muito medo dele. E depois, cada vez que telefonava e o padrasto descobria, ela apanhava mais.

Vitória bem que gostou da conversa que tivera com a pessoa que tinha atendido ao telefone. Parecia ser do bem, conversava, falava, falava... Mas para que aquele papo todo, se a família era sempre a mesma? Família? Dava para chamar isso de família?

A mãe via tudo, mas não fazia nada. Uma vez, ela havia tentado se colocar entre o padrasto e a filha, mas acabou apanhando. Nunca mais tentou.

Vitória jogou dentro de uma sacola plástica as poucas coisas que tinha e saiu de casa sem nem olhar para trás.

"Nem mais um minuto! Nem mais um minuto!" pensou, os olhos embaçados, a voz entalada, o braço doendo, o peito afogado.

"Qualquer coisa é melhor do que ficar naquele barraco com dois bêbados!", concluiu, enquanto desviava de um homem que tentara lhe passar a mão, e procurava ignorar o que gritava um grupo de meninos enquanto ela passava.

Uma amiga, Bila, que também tinha fugido de casa, tinha dito que na rua eram uma mesma família... Sem pai nem mãe, só irmãos. Não passavam fome, porque sempre tinha alguém que dava alguma coisa para comer.

- E banho? - perguntou Vitória com curiosidade.

- A gente vai dando um jeito... Nas estações do metrô tem banheiro limpinho... A gente entra perto de alguma mulher, fingindo que ela é nossa mãe... E tem bar que deixa a gente usar o banheiro.

Vitória tinha ficado de aparecer se a barra pesasse no barraco, se o padrasto a pegasse de novo. Sabia onde a Bila ficava. Era só pegar um ônibus com o trocado que tinha escondido e pronto.

Desceu na Praça da Sé. Ainda estava claro, mas os meninos e as meninas já começavam a aparecer aqui e ali, uns mais sujos, dois que não conseguiam parar em pé - talvez tivessem bebido ou fumado crack -, três limpos. A Bila tinha dito que não usavam droga nem cheiravam cola, mas os dois que não conseguiam parar em pé e começaram a rir assim, do nada lhe deram um susto enorme.

Perguntou pela Bila. Uma garota mais velha respondeu que a Bila sumira havia seis ou sete dias. Sumiu? Como sumiu? Do nada? - perguntou Vitória, espantada e assustada.

- É assim mesmo. Às vezes a pessoa aparece, às vezes morre por aí, embalada, na ponta do espeto, sei lá... - disse a menina com um risinho meio nervoso.

Vitória não achou graça. Sentou-se na escadaria da igreja e começou a pensar, desanimada: "E agora? Pra casa não volto, então faço o quê?

Decidiu que não ficaria com aquele grupo. Ia procurar um lugar legal para ficar, pois tinha medo de acabar sumindo também.

Durante algum tempo, perambulou por muitas ruas e praças, conviveu com vários grupos e adotou algumas famílias. Às vezes, até sentia saudades do barraco, da mãe, dos vizinhos. A vida na rua não era nada fácil e em algumas situações sentia muito medo, mas ainda assim, quando lembrava do padrasto, preferia a rua.

Fez muitas coisas para sobreviver: vendeu balas e chicletes nos faróis, além de canetas, guarda-chuvas, até limpou pára-brisas. Conseguiu juntar um dinheirinho, que guardava numa carteirinha plástica ensebada junto com um documento falsificado que atestava ser ela representante de uma associação beneficente qualquer.

Cometeu pequenos furtos, mas não gostou de fazê-lo. Sabia que não era certo e ficava muito nervosa ao fugir da polícia ou das pessoas quando elas gritavam:

- Pega ladrão! Pega ladrão!

Uma vez tentou fumar crack, mas desistiu ao ver os outros meninos chapados. Passou mal ao cheirar cola de sapateiro e o pessoal da rua se assustou tanto que nunca mais ofereceu nada.

A cada episódio ruim por que passava, Vitória mudava de rua, até que se fixou numa esquina onde ninguém oferecia cola, ninguém aliciava para roubos.


***


Vitória tinha um sonho. Sonhava com um príncipe encantado.

Quando era pequena, sua mãe trouxe para casa um livro que a patroa lhe dera. Era a história de uma menina chamada Cinderela. A patroa da mãe tinha dito que era bom ler para as crianças, e ela lia para Vitória nos raros momentos de sossego no barraco.

Como era o único livro que tinham, a mãe lia sempre a mesma história e Vitória se sentia fazendo parte dela.

Agora, passado um tempo sem ouvir a história, Vitória já não se lembrava bem dela, mas se lembrava de que no final, depois de ter sofrido muito, aparecia um príncipe que tinha se apaixonado pela Cinderela. Ela não sabia exatamente o que era um príncipe e as ilustrações do livro não ajudavam muito a imaginar, porque estavam muito desbotadas. O príncipe da ilustração não era bonito, era branquelo, pálido, esquisito, mas quem sabe não existiriam outros príncipes e ela, Vitória, não poderia ser uma Cinderela? Era esse o sonho que alimentava o sorriso e o brilho de seus olhos.



Cinderela do asfaltoOnde histórias criam vida. Descubra agora