Capítulo 2

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2. O encontro com a fada. Fada?


Foi na última rua em que se fixou que Vitória conheceu dona Guiomar, uma mulher de mais ou menos 48 anos, bonita, bem tratada, bem vestida e que tinha um carrão. Era a pessoa mais arrumada, perfumada e meiga que Vitória já conhecera. Dona Guiomar passava por aquela esquina todos os dias na mesma hora, a caminho do escritório de advocacia em que trabalhava. E Vitória estava sempre lá para oferecer balas, chicletes e papear, enquanto o farol estava vermelho. Dona Guiomar não era daquelas pessoas que tinham vidro preto no carro e morriam de medo de qualquer criança. Ela abria o vidro, sorria e conversava.

Guiomar achava graça nas perguntas de Vitória. Adorava a inocência, que a vida na rua ainda não tinha tirado dela. Às vezes, durante o dia, ao se lembrar da menina de sorriso fácil e olhos brilhantes e tristes, ficava se perguntando qual seria o futuro dessa menina, de todas essas crianças que perambulavam pelas ruas sem destino, desprotegidas, sujeitas às mais terríveis experiências.

Guiomar não desconhecia os perigos da vida na rua. Os jornais sempre traziam notícias envolvendo crianças e jovens que viviam nas ruas.Em que adultos se transformariam?

Havia milhares de outras crianças nos outros milhares de faróis, mas Guiomar preocupava-se com Vitória, porque era a menina com quem tinha contato... Todos os dias, ansiava por chegar ao farol e encontrá-la, e ficava aliviada ao constatar que ela sobrevivera a mais uma noite na rua e que seu sorriso ainda estava lá.

Um dia perguntou:

- Quem escolheu o seu nome? É tão bonito.

- Foi minha mãe - respondeu Vitória e um véu de tristeza encobriu o sorriso. - Ela disse que escolheu este nome porque eu seria vitoriosa e teria uma vida melhor que a dela. A senhora acha que viver na rua é melhor que ter família?

Guiomar não respondeu. Olhou a menina com o coração partido. O farol abriu e ela se foi.

No dia seguinte, nem a menina nem qualquer outra criança estava no farol. Guiomar estacionou o carro e foi indagar. Entrou no bar que ficava na esquina. Benê, a dona do bar, foi logo sorrindo. Conhecia a mulher de vista e Vitória sempre falava de como ela era legal.

- Moça, onde está a Vitória? Onde estão as crianças que ficam neste farol? - perguntou aflita.

- Ah, dona, passou o pessoal da secretaria e levou todas as crianças. - respondeu Benê sem se abalar.

De vez em quando a prefeitura fazia isso. Levava para a Fundação Casa, tentava localizar os pais. Muitas vezes, depois de alguns dias, as crianças estavam de volta às ruas em que costumavam ficar ou apareciam outras.

- Como levou todas? Assim, sem mais nem menos? - questionou Guiomar.

- Não é sem mais nem menos. Eles não podem deixar essas crianças zanzando na rua como almas penadas pagando pecado. O ruim é que depois, não sei por que, elas estão de novo na rua. Deveriam cuidar melhor dessas crianças, ver se elas têm família, ver se as famílias têm condições de criar... Mas não... Recolhem como se fossem bichos e depois soltam. Só sei que não adianta muito.

Guiomar se despediu de Benê decidida a procurar por Vitória


***


Apesar de todos os seus protestos, Vitória havia sido levada de volta para casa. Casa? A mãe estava furiosa por ela ter fugido, e ela apanhou de novo da mãe e do padrasto, que já batia quando não havia motivo. Ela então decidiu esperar uns dias e voltar para a rua, para a mesma esquina. Não ia ficar no barraco nem morta... A rua era melhor.

Passaram-se três semanas. Numa manhã cinzenta, Vitória fez sua trouxa, pegou o dinheiro que havia guardado e, aproveitando que a mãe e o padrasto tinham saído, foi embora.

Quando apareceu no bar da Benê, essa ficou muito feliz. Gostava da menina e sentia sua falta. Deu-lhe um sanduíche de queijo com presunto e um suco e contou que a dona do carrão havia procurado por ela e estava muito preocupada.

Vitória contou que foi levada para casa, que apanhou por ter fugido e que tinha decidido fugir de novo.

No dia seguinte, esperou ansiosa por dona Guiomar, que não acreditou quando viu a menina no farol.

- Por onde você andou?

- Os moços levaram a gente para um abrigo e depois me levaram para casa... Mas apanhei de novo, minha mãe nem ficou feliz em me ver e eu decidi voltar para a rua. - disse Vitória com a voz embargada, enquanto mostrava os hematomas que resultaram da surra que levou.

Dona Guiomar então perguntou:

- Vitória, quero conhecer sua mãe. Vou falar com ela e ver se ela permite que você trabalhe na minha casa. Quer dizer, você pode ajudar a Durvalina e claro, ir para a escola. Mas só posso fazer isso se sua mãe permitir.

Vitória não respondeu. Ficou olhando incrédula. Tinha ouvido bem? Provavelmente não. E depois, como levaria essa mulher tão fina para o barraco em que morava? E como ia apresentar a mãe, com roupas da patroa, sempre um número maior? Não, não ia dar certo.

- O farol vai abrir, Vitória! Responde logo... Você vai me dizer onde mora ou não? Quer continuar na rua?

Então ela tinha ouvido direito. Dona Guiomar estava propondo que ela fosse morar com ela. Ela não estava delirando!

Buzinas estridentes começaram a tocar, Vitória fez que sim com a cabeça e Guiomar gritou, engatando a primeira:

- Amanhã, no final da tarde, passo para te pegar.


Cinderela do asfaltoOnde histórias criam vida. Descubra agora