Contudo, se de um lado havia calmaria, era turbulência que habitava o samurai vestido para a guerra.
Rokurota era um espadachim experiente, melhor até mesmo do que Hanshirô, segundo muitos que discutiram o assunto. Contudo, de forma alguma havia abandonara as emoções quando entrou na cabana que sediou aquele encontro kármico. Família, dever, honra e lealdade estavam por trás do olhar austero do samurai armadurado. Pilares que por centenas de anos guiaram homens justos e mesmo o reinado divino dos maiores imperadores desta terra. Mas no recém chegado essas bases tremiam sob o próprio peso e se agitavam perante a tormenta causada pela dúvida. Como Hanshirô certamente não falhou em discernir, os valores que regiam Rokurota, assim como a sua alma, estavam em conflito.
Não há quem negue que foi Rokurota o primeiro a se mexer. Contraiu os músculos do braço direito e lentamente — quase sorrateiro — começou a levar a mão ao cabo da espada em sua cintura. As pernas acompanharam o movimento, pouco a pouco, milímetro por milímetro se colocando em uma posição apropriada para sacar. Hanshirô também agiu, soltou delicadamente o seu coque e começou a buscar, ao seu lado esquerdo, a bainha da katana. Sua mão que segurava a wakizashi também foi posta em movimento, e lentamente escorregou da cabeça do guerreiro para depositar a lâmina no chão e se ver livre para desnudar a outra espada.
Não contaram quanto tempo durou tal ritual e ninguém jamais pôde afirmar quando enfim os guerreiros terminaram de se colocar a postos. Durante todo o longo processo em que o inconsciente guiou movimento e velocidade, tanto Hanshirô quanto Rokurota atribuíram a si mesmos a culpa de, em encarnações anteriores, matar o próprio pai, ou então trair um Imperador. Apenas tais crimes poderiam explicar a situação que os envolvera. E talvez estivessem certos. Amigos tão leais que em vidas passadas só poderiam ter sido irmãos não protagonizariam uma história de tamanha tragédia por mero capricho do universo.
Tais ponderações pertenceram não só aos que vieram depois, mas eles mesmos exploraram silenciosamente a filosofia e a teologia em busca de uma resposta. Pois no fim é essa a índole mesmo dos mais virtuosos: procurar o motivo dos erros do agora no que há muito se passou.
Quando finalmente aquela pausa teve seu fim e, de um lado havia um guerreiro com a mão no cabo de sua espada e do outro um homem sentado sobre os joelhos, pronto para sacar sua própria arma, ainda houve um momento onde as lâminas escondidas em suas bainhas, ferramentas de morte e almas guerreiras que eram, imploraram para serem sacadas.
Não houve ataque. Como qualquer um poderia imaginar, ainda não era o momento. Ao invés disso um ruído abafado escorreu por detrás da bocarra de demônio que cobria a face de Rokurota. E Hanshirô deve ter sentido o frio que as brisas do medo costumam carregar até os homens. Afinal, tendo iniciado ou não uma jornada para deixar-se preencher pelo vazio, o que poderia um mero homem contra o sobrenatural? Que alma aventureira poderia enfrentar um oni desgarrado e malfazejo?
Mesmo naquela época, já haviam passado centenas de anos desde a era regida por Amaterasu, quando os heróis lutavam contra demônios como se eles mesmos fossem deuses. Mas a despeito da decadência dos mortais e da vinda dos Últimos Dias da Lei, tais seres vis ainda existiam e havia entre eles alguns que tomariam a forma de um amigo estimado apenas para atormentar sua futura vítima.
Hanshirô pensou no honorável Yorinobu, e também nos três samurai que jaziam mortos logo atrás de Rokurota, alguns metros além da cabana. Entretanto, acima de tudo, pensou em Hanakichi e no dedo mindinho decepado que lhe fora presenteado. Dadiva que por algum motivo miraculoso ainda se conservava fresco, tal qual apêndices ainda ligados a uma mão viva. A doce Hanakichi. Não havia sido a sua espada que tomara a vida de um ser tão encantador, mas ainda assim, como tudo o que viera nos últimos dias, tão certo quanto o sol precede a lua e o mundo completa o seu ciclo, fazia parte de seu tormento.
A mão esquerda do homem ajoelhado se contraiu e a bainha de sua espada tremeu. Mas não durou muito. E eis que Hanshirô deixou os dedos relaxarem. Se era sofrimento e morte que havia em sua estrada, era isso o que ele teria. Aceitava o seu destino.
À sua frente, com uma aura mefítica de pura vilania e agressão, a coisa-Rokurota sacou uma katana rubra e de gotejantes farpas afiadas.
Mas a ilusão — pois assim certamente o era — se desfez e então estava ali apenas o velho Rokurota, que retirou a mão do cabo de sua espada e levou-a ao rosto.
Um movimento preguiçoso, uma máscara caída ao chão com um ruído metálico e o que antes era um urro demoníaco se transformou em um riso, para logo em seguida dar lugar a uma gargalhada.
Rokurota, como se dizia ser de seu feitio quando estava apenas entre seus amigos mais próximos, não conseguia conter as risadas. Ele se encostou na abertura da entrada com um dos braços e com o outro escondeu os lábios, o bigode respeitável e a barba bem moldada que seu menpo desvelara.
Hanshirô primeiro sorriu, um gesto que nele deve ter parecido triste e melancólico. Desde que conseguia se recordar, Rokurota sempre havia sido bem humorado. Quando se conheceram, ambos aprendizes de espadachim sob a tutela do sensei Takezo — homem de fama imensurável devido a sua escola que era uma das melhores daqueles tempos —, o amigo sempre estivera pronto para uma gargalhada. Muito mudara desde então, mas isso permanecia. Apesar de tudo, não demorou muito para que, ele mesmo, se rendesse aos risos.
Ficaram os dois gargalhando por vários instantes, sem que eles — ou ninguém que contou a sua história — conseguissem precisar o porquê. Alívio? Alegria? Ao menos isto é certo que não. Mas é dito que Rokurota é desses homens irascíveis que olham para o que um suposto destino os reserva e o desafia com um sorriso.
Com o passar dos instantes, os ânimos foram esmorecendo e os amigos se encararam mais uma vez. Rokurota ainda demorou um pouco mais para se conter, então limpou os olhos úmidos com as costas da manopla e terminou de entrar no casebre esquecido. Olhou ao redor, com o riso ainda lutando em seus lábios.
— Então foi aqui que passou os últimos dias? — ele perguntou, no fim das contas mais abatido do que gostaria — Se não o encontrasse sentado onde está, pensaria que apenas as aranhas, centopeias e susuwatari se atreveriam a fazer daqui a sua morada, Hanshirô-dono.
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Questões de Honra e Lealdade
Ficción históricaDois amigos de infância, samurais experientes na arte da espada, se encontram mais uma vez no instante em que seus objetivos se interpõem. Nos últimos instantes que têm direito, conversam sobre o passado, sobre as tragédias recentes e suas pretensõ...