"A existência do inexistente"

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Chopin Nocturne Op.9 No.1...

Mary

10/03/1920
Portland, Oregon
11:44 am
Parcialmente ensolarado

Seria tão fácil citar Shakespeare, Goethe, Luís de Camões ou até mesmo Jane Austen agora, porém para mim tudo que é magnífico deve ser apreciado no silêncio dos inocentes e surdos, e como sou uma boa amante dele e da observação, me deleito apenas em analisar minuciosamente essa mulher jovial e ruiva a meros metros de mim, tendo um leve sorriso formado no rosto, seguido por bochechas rubras e uniforme de serviçal com estampa floral, com um espanador em sua mão direita.

Quando seus olhos encontram os meus, desvio freneticamente, estamos neste mesmo impasse a copiosos minutos, eu inconscientemente a olho, ela retorna o olhar, eu desvio para o livro, ela me encara como se esperasse por mim novamente e depois se dirige ao abajur a sua frente.

Não tenho o poder de discernir o motivo significativo de querer a observar, todavia quando nossos olhares se cruzam por um átimo de tempo, eu sinto como se minha alma e o meu cerne estivesse irrevogavelmente tão expostos quanto minha derme, essa sensação me causa tremores, até onde não sabia que podia, e a única palavra coerente até o meu ver, que se ressalta em minha mente é... Sublime.

Volto a fitar o exemplar em mãos, com o único intuito de ter novamente o bom senso e a racionalidade. Essa folha com uma única frase, de cinquenta e oito palavras gramaticalmente corretas em um tom de azul celeste, se torna cativante e apta ao meu desconexo cérebro, é tão indagador e pueril, que eu me sinto tola pela minha idad...Uma voz se torna mais alta que a dos meus pensamentos profundos, ela é curiosa, e completamente inesperada.

-A senhorita acredita em um Deus? - Uma questão um tanto quanto inusitada a perguntar para alguém que malmente sabe o seu nome. Não levanto o olhar e tampouco lhe respondo.

-Visto que a minutos atrás a senhorita estava lendo Dante, e convenhamos que é uma curiosidade um tanto mórbida ler sobre Deus e o Diabo, de uma forma tão detalhadamente poética, não conheço nada que prove a sua existência quando chego em becos no subúrbio e me deparo com crianças órfãs passando fome e necessidades. Mas ainda sim há algo, tem que haver algo, pois se não tiver, estamos sozinhos por inconstantes. As vezes eu imagino que nós criamos Deus, para ter alguém para quem acreditar que vá nos dar tudo que queremos se formos bons e nos levar para como dizem "o paraíso", e alguém a quem nós vamos jogar a culpa pelos nossos atos, e nos castigar no final por eles, mas ninguém é cem por cento benigno ou maligno, é claro estou me baseando pela religião cristã, já que fui obrigada a ir quando criança, mas essa é a "minha percepção, a minha opinião", e eu quero saber a sua...- Com um único fôlego aparente, ela me roga esse monólogo, me deixando perplexa com a quantidade de palavras impensadas que saíram dessa mulher, e também com seu sistema respiratório.

-Talvez se eu buscar outras crenças ou não sei, ter mais fé, algo possa...- A interrompo antes que ela possa continuar a falar mais do que já disse. Estou questionando seriamente se uma rolha de vinho consegue fazer o trabalho que eu acho impossível.

-Onde estamos?- Falo em um tom baixo, não olhando para ela ainda.

-Biblioteca, por que? A senhorita não está bem?- Sua voz quase carregada de preocupação, que acredito não ser verdadeira, as pessoas nunca são comigo, nada mudaria desta vez.

-O que as pessoas fazem em uma biblioteca?- Continuo de forma baixa.

-Não sei a senhorita, mas eu leio, entretanto como estamos nesta posição aquisitiva, eu estou apenas limpan...- A interrompo novamente.

-Pois bem, não me interessa no que você acredita ou deixa de acreditar, se você quer expressar a alguém o seu desagrado perante a existência ou inexistência de seres, procure um padre, confio severamente que ele irá adorar você em um confessionário. Até lá contente-se em me deixar ler.- Desconheço um modo melhor de fazer uma pessoa se calar de forma desinteressada. Ela virou e se dirigiu à enorme estante com uma face neutra e as bochechas mais coradas quase similares ao cabelo, arrastou um livro delicadamente e retornou a mim, com passos largos, ela põe o livro silenciosamente na mesa, e vai em direção a porta. Me inclino um pouco e o reconheço rapidamente, O morro dos ventos uivantes!

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⏰ Última atualização: Jul 04, 2022 ⏰

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Entre o verde mar e o azul índigo ( Pausada )Onde histórias criam vida. Descubra agora