Capítulo único

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Após acordar de um sono profundo, Bela calçou meias nos pés trêmulos e colocou luvas nas mãos azuladas. Ela se deslocou até a porta, a fim de ir para a cozinha tomar seu café com leite, como sempre fazia. Porém, a maçaneta emperrada a impediu de passar. Sem ninguém para chamar, já que morava sozinha, em uma casa de dois andares que estava na família há décadas, se aproximou da janela. Quando olhou a vizinhança, deu um pulo para trás, boquiaberta; todas as casas vizinhas pareciam desabitadas, as ruas estavam desertas, e para piorar, muita neve caía do lado de fora, em meados de janeiro. Tentou abrir a janela, usando toda a força que tinha, novamente em vão.

O celular era sua última esperança Infelizmente, o aplicativo do Whatsapp estava desinstalado, e os números em sua lista de contatos não tinham nome; e, para ela, a maior vergonha possível seria ligar para o entregador de pizza por acidente. Ela também não lembrava o telefone dos pais e do ex-namorado, tantos anos sem conversar. Assim que lembrou do 190, a bateria acabou. Então, revirou o quarto todo, em busca do carregador, mas não teve sucesso. Quase sem fôlego, se deitou no chão e chorou desesperadamente, em meio a dezenas de livros espalhados. Inconsolável, olhou o calendário pendurado ao lado da porta, o vermelho das marcações nos dias passados, e percebeu que suas únicas certezas eram o nome e número daquele horrendo dia.

Depois, avistou uma garrafa de chá e um prato de pão com manteiga, embaixo da cama coberta por lençóis emaranhados, e comeu, para afogar as mágoas, sem deixar uma gota e migalha sequer, mas percebeu que a comida não estava lá, assim que acordou. "Talvez, por conta do sono e estresse, não tenha reparado nisso aqui", pensou. Diante da desordem no quarto, arrumou, com pouco ânimo, os livros e pertences nas duas estantes do quarto, uma em cada extremidade. A última coisa que guardou foi uma versão 2 em 1 de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Folheou algumas páginas do livro e iniciou a leitura, na esperança de esquecer um pouco dos problemas. A prazerosa experiência foi interrompida por uma frase de Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá: a Rainha Branca afirma que tentava crer em coisas impossíveis todos os dias, e, certas vezes, conseguia acreditar em até seis delas! Essa parte da história fez Bela querer rasgar a página; para ela, coisas impossíveis eram como as mentiras contadas pelos contos de fadas, e na vida real pelos adultos. Se tudo fosse possível, seus pais e seu ex não a abandonariam, depois de saber que o sonho dela era ser bibliotecária.

Apesar de ser o terceiro ano vivendo sozinha, a memória da família se mantinha intacta no coração de Bela, por meio dos autorretratos, das roupas e jóias de sua mãe, e dos belos paletós de seu pai. O que menos desejava era viver só pelo resto da vida, mas o abandono fez dela uma jovem introvertida, até mesmo na faculdade. Dessa forma, os livros eram seus melhores amigos; ela sabia que nunca seria decepcionada por eles. Voltando ao livro do País das Maravilhas, Bela viu as palavras da última página que leu diminuírem de tamanho rapidamente, e a redução era ainda mais veloz se ousava reler alguma frase. Ela esfregou os olhos, e aproximou o rosto do livro, pálida, e, de repente, entrou nele, de cabeça.

A jovem caiu em um corredor vazio e pouco iluminado, e decidiu caminhar por ele, a fim de achar uma saída. Depois de um bom tempo, resolveu descansar, pois andava, andava, e nada conseguia encontrar.

- Será que isso é um sonho, ou melhor, um pesadelo? Talvez eu tenha cochilado com a cabeça no livro...

Virou-se para trás e se assustou ao topar com um cavalete e uma tela em branco, que antes certamente não estavam ali.

- Não se preocupe, Bela, sonhos e pesadelos nunca fazem sentido... Caso o contrário, você estaria maluca, pois tem alucinações e fala sozinha, desde que veio parar aqui.

Ela reparou em seis lápis de cores diferentes junto do cavalete, e logo das seis coisas impossíveis que leu no livro se lembrou.

- Porque essas histórias sempre me perseguem? Eu não aguento mais isso! - passando as mãos na cabeça, e cerrando os olhos, gritou.

Como tinha nada a perder, usou um lápis de cada vez e escreveu, com as mãos lentas e trêmulas, a seis mentiras (agora, coisas impossíveis) que um dia achou que fossem verdades, e as coisas que, na visão dela, nunca aconteceriam. Elas eram:

1. Eu sou amada
2. Alguém se lembra de mim
3. Eu escolhi uma carreira de sucesso
4. Deixarei de ser solitária
5. Eu vou conseguir sair do quarto
6. Depois disso, darei uma super festa

Assim que terminou a lista, olhou para os lados, esperando que acordasse do mesmo jeito que deixou sua "dimensão", com a cabeça no livro. Entretanto, nada aconteceu. Tentou se lembrar da frase completa dita pela Rainha Branca, e só então percebeu o que faltava: acreditar.
Fechou os olhos e usou toda sua imaginação para conceber um mundo ideal, onde não havia mentiras, nem pessoas infelizes. Ela sorria ao andar de mãos dadas com o namorado, e era hipnotizada pelos seus olhares puros e intensos. De tanto mergulhar nessa realidade, passou a crer totalmente nela, sem conseguir distinguir o real do falso.

Bela abriu os olhos e se viu deitada na cama, do mesmo jeito que acordou no início do dia. O livro que estava lendo antes do sonho não estava mais no chão, e nem na escrivaninha. Ela o procurou nas duas estantes, que tinham uma arrumação totalmente diferente, e nada.

Ouviu sons vindos do andar de baixo e foi até a porta, lentamente, com medo de ser um ladrão. Com a mão na maçaneta, se lembrou de olhar a janela, e quando viu que tudo voltara ao normal, se ajoelhou, chorando com o rosto nas mãos.
As ruas tinham movimento, as casas estavam ocupadas, o céu nunca fora mais limpo...
Abriu a janela com um sorriso no rosto, e cumprimentou o Sol brilhante. Destemida, voltou para a porta e girou a maçaneta, sem pensar duas vezes. A porta abriu. Com o alto ranger das dobradiças, o ruído do andar de baixo cessou.

Desceu as escadas, de pijama, e ficou paralisada ao ver a sala de visitas cheia de convidados bem vestidos. Do meio da multidão, saíram seus pais e seu ex, com largos sorrisos, e foram até ela, dando os parabéns pela contação de histórias para crianças carentes, pelo trabalho de bibliotecária e pela autopublicação de seu livro. Franzindo o nariz, Bela balançou a cabeça, e colocando as mãos nos bolsos da calça, tirou, de cada um, três lápis idênticos aos que usara no sonho. Sua mãe tirou da bolsa o mesmo livro que Bela tanto procurara, e o colocou em suas mãos.

No fim das contas, nem tudo é tão impossível a ponto de nunca acontecer.

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PS: Quem leu Alice no País das Maravilhas vai entender porque, no momento em que a bela cai no corredor vazio, tudo começa a rimar.

Para quem nunca leu, eu escrevi assim porque o livro tem vários poemas, e todos rimam, então, resolvi fazer essa referência.

Se gostou desse conto, queria pedir para deixar um voto e um comentário com o que te agradou e o que pode melhorar.

Agradeço pela leitura!


Em Branco (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora