Alma não tem cor

1.9K 128 34
                                    

Kimberly

Estou assistindo a mais um episódio da série que estou acompanhando no momento, de bobeira, enrolando meu cabelo com os dedos, um calor dos infernos, usando apenas um shortinho e uma miniblusa sem sutiã, o ventilador ligado no máximo e as janelas escancaradas.

O episódio acaba e só então desperto pra realidade. Já são nove e horas e quinze minutos da noite. Eu já deveria estar a caminho da boate. Levanto da cama de um pulo e visto uma roupa qualquer que está no meu campo de visão, um jeans e uma camiseta. Calço os tênis, arrumo meus pertences na bolsa rápido e saio do quarto.

Camila está estudando na mesa da cozinha e minha avó está sentada na porta chupando laranja.

- Ah meu Deus, que filha estudiosa eu tenho! - exclamo orgulhosa, dando um beijo na bochecha de Camila e ela corresponde com um sorriso vaidoso. - Você devia sair um pouco com seus amigos. Vai acabar criando raízes nesse barraco - aconselho preocupada com a saúde mental da minha cria.

- Não tenho tempo para isso, mãe. Preciso estudar pro Enem! - ela reclama fazendo biquinho.

- Mas você nem terminou o ensino médio ainda!

- Por isso mesmo, quanto mais eu estudar, melhor será. Preciso conseguir uma boa pontuação pra entrar numa faculdade.

- Deixa a menina, Kimberly, não é porque ela é sua filha que é festeira igual a você! - minha avó resmunga. Não a contesto. Eu tive Camila com quinze anos e só não me arrependi porque ela é uma garota maravilhosa, ajuizada, meiga, responsável e educada. Eu conheci o pai dela em um baile funk, transamos, a camisinha estourou e aqui estamos nós, eu com trinta e três anos, mãe solteira, tendo que me virar pra não deixar faltar nada pra ela. Não nego que pensei muito em fazer um aborto, mas graças a Deus eu desisti. Camilinha é muito inteligente, não quero que ela tenha que trabalhar de babá, faxineira ou doméstica. Quero que ela estude pra ser alguém na vida e para que isso aconteça, eu não meço esforços. Não que estas profissões não sejam dignas, só acho que não são valorizadas como deveriam.

- Está bem, vó, você tem toda razão - também dou um beijo na velha só que na testa. - Boa noite para vocês, até amanhã cedo - me despeço e não espero resposta. Estou atrasada pra caramba. Meu expediente começa às vinte e duas horas. Gasto dois ônibus de onde eu moro até a boate. Um até o centro e do centro até o local.

Atravesso a favela praticamente voando, cumprimento um e outro no caminho até que chego no ponto. O problema de ser albina e ter nome estrangeiro é que é impossível passar despercebida, se tu cagar na rua vão dizer: "olha lá a albina cagando na rua" ou "olha lá a Kimberly" "Ah a Kimberly neta da dona Jussara?!"

Algumas pessoas me encaram sem disfarçar. Não ligo. Já me acostumei. Quando eu era mais nova tinha vergonha de ter nascido albina, mas hoje em dia essa condição faz com que eu me destaque, o que é ótimo para o meu ramo de trabalho. Suspiro fundo. Meu maior medo é que minha avó e minha filha descubram que eu trabalho em uma boate de stripper e trabalhadora do sexo e não de auxiliar de serviços gerais em um hospital. Eu sequer terminei o ensino médio. Não conseguia sair durante o dia por causa do sol forte, e quando tentei passar pro turno da noite eu fui assediada no trajeto e nunca mais quis sair de casa sozinha, até que quando eu fiz dezoito arrumei esse trabalho na boate e consequentemente ganhei mais segurança. Mas não tinha muitas opções. Quando eu engravidei, minha avó que deu conta de tudo, a coitada fazia faxina, passava e lavava pra fora, e ainda vendia doces na rua. Eu precisava trabalhar pra sustentar minha filha e minha avó que já está idosa. Até hoje ela não conseguiu aposentar porque nunca pagou INSS na vida e só recebe o auxílio do Loas. Mas vivemos no Brasil e é impossível alguém sobreviver com um salário mínimo pagando aluguel.

O ônibus finalmente chega parecendo uma sardinha, todo mundo junto e misturado, se espremendo para caber. Pra piorar tem um cara do meu lado que está fedendo a carniça. Na próxima vida eu quero vir rica. Ninguém merece. Eu que não achava que pudesse piorar, um outro cara para atrás de mim e me encoxa. Dou um pisão no seu pé e uma cotovelada no bucho dele, macho escroto da porra. Pelo menos isso é o suficiente para ele se afastar de mim.

Cinquenta minutos pra chegar no centro. Desço correndo até o outro ponto. Telefone tocando sem parar. É Tiara, a gerente da boate, essa mulher não larga do meu pé. Finjo que nem vi e continuo meu caminho. Felizmente o segundo ônibus está um pouco mais vazio e dá até para eu me sentar. Fico mexendo no celular, Facebook, Instagram. As mesmas coisas sem graça de sempre. Uma mistura de futilidades desgraças. Ajeito meus óculos e olho pela janela, a noite é minha amiga. Albinismo e sol não combinam. Quando eu era criança e insistia em andar no sol, vivia cheia de queimaduras e meu grau ocular só aumentou. Somos muito suscetíveis a doenças de pele, entre elas o câncer, e nossa visão é bastante comprometida, podendo levar a cegueira. Existem três formas de albinismo, o ocular, o parcial e o oculocutâneo e subtipos. O meu é a terceira forma, ou seja tenho toda a pele, os pelos e os olhos sem melanina.

Enfim chego na boate beirando a meia-noite. Sexta-feira, a casa já está lotada.

Cumprimento o safado do Diogo, o segurança. Acho que ele já pegou todas as putas dessa boate, inclusive eu, também não é para menos, ele é muito gato.

- A Tiara está que nem doida atrás de você, Kim.

- Foda-se - entro pelos fundos com Diogo rindo de mim.

A chata vem atrás de mim assim que me vê. Corro pro camarim porque estou atrasada e também porque quero fugir dela.

- Você não tem jeito mesmo né, Kimberly? Isso são horas de chegar? Tive que pedir a Yara e a Jennifer pra irem primeiro.

- Ótimo, assim a melhor fica pro final - debocho tirando minhas roupas e indo pro banheiro tomar uma ducha pra tirar inhaca de ônibus.

Só ouço Tiara soltar uma bufada e me deixar sozinha. Ela sabe que não adianta discutir comigo, eu sempre termino antes de começar com alguma pérola como essa.

Não demoro no banho. Me arrumo em frente ao espelho. Primeiro troco os óculos pelas lentes. Quando chega a parte que eu mais gosto da maquiagem, faço questão de passar umas três mãos de batom vermelho na minha boca carnuda pra ele ficar bem forte, da cor da fantasia de bombeira que eu estou usando. Esse tom destaca minha pele e meu cabelo crespo sem pigmento.

Dou mais uma conferida, suspiro fundo, e vou pra atrás do palco, faço um gesto pra Priscila, a DJ, ela entende que eu vou me apresentar agora e assim que ela me anuncia e a música começa a tocar e eu entro no palco, todos param para me ver tirar as roupas, enquanto danço sensualmente.

Uma cliente chama minha atenção. É uma mulher alta, cabelos castanhos longos e lisos, pele clara e roupas sofisticadas. Nunca a vi por aqui e esse ambiente não é muito frequentado por mulheres.

Ela não tira os olhos de mim. Uma energia poderosa e irresistível também faz com que eu não consiga parar de olhar para ela, e assim permanece durante toda a minha coreografia, como se eu estivesse dançando só para ela, como se só existisse nós duas nesse salão...

Mancha de batom (Trans/Bissexual)Onde histórias criam vida. Descubra agora