A garota se lembrava.
De muitas coisas
Se lembrava da sensação das pétalas caindo sobre sua pele durante o outono ou da neve durante o inverno. A textura das páginas dos livros que lia. O doce aroma do chá de lavanda, que lembrava tão bem que a simples memória era o suficiente para saciar sua sede quando não podia o ter.
Recordava de quando era criança, de quando saia com seus pais, grudada em suas mãos. Como passeavam pelo calçadão em seus dias livres.
No entanto, havia uma memória que sempre a perseguia. Pensava nela com tantos detalhes que parecia a reviver completamente. O dia em que se deitava na grama junto a sua mãe, debaixo da árvore dourada enquanto sua genitora acariciava gentilmente as madeixas enroladas de sua filha, contando-lhe uma história, a favorita da criança, sobre um coelho atrasado e uma menina curiosa que o seguia até o outro lado da toca.
A brisa era suave e acolhia seus corpos enquanto ouviam a história que já fora contada milhares de vezes. A mãe gostava de comparar a criança do livro com a sua, sobre como eram ambas curiosas que não pensariam duas vezes antes de seguir um coelho por um lugar apertado.
Ela lembra que ria com essa comparação e dizia ser mentira, pois ela era o gato, sempre desaparecia após falar algo que ninguém entendia.
Eram doces momentos de um dia que era rotineiro. Até a parte dolorida chegar.
O caos, o desespero, o sangue e as lágrimas que a cercavam naquela última noite.
Na floresta encantada da rainha ela viu o "mal". O sem face. Um deus sem corpo. Um Obris.
Era a coisa mais aterrorizante que já vira e poderia imaginar, um ser sem forma que lutava por uma, uma criatura com muitas faces, mas ao mesmo tempo sem nenhuma.
A sensação daquele dia era palpável.
O aperto no peito, a incapacidade de respirar e a pressão que a destruía. Fora a mente que enlouquecia diante de tal criatura deformada.
Aquilo parecia rir diante o desespero, mesmo não possuindo boca para tal feito, mas era notório seu divertimento o que era a pior coisa que poderia acontecer, mais ainda diante daquela situação, tal coisa possuía inteligência.
Ela não queria lembrar, mais daquele dia, mas a memória a amaldiçoou.
Relembrava como o tempo não passava, de como foi agarrada pelo colo gentil e urgente de sua mãe e como ela corria contra o vento.
Pensava em como ela a escondeu diante as árvores utilizando da benção que conquistou. Em como recitava, como um mantra, para a criança, que tudo daria certo e elas voltariam para casa logo.
Revivia a inocência de uma criança apavorada, aquela que confiava nas palavras de sua genitora.
Como era tola.
A memória que mais lhe atormentava estava ali diante dela. O momento em que a criatura lhes achou.
Era terrível sua mente gritava para desviar o olhar ou achava que enlouqueceria. Mas lembrava que assim não o fez.
Algo a atraia o que a fez observar o maior dos horrores.
Afinal de contas, ela recordava de tudo.
Recordou do instante em que a aberração se postou diante a mãe, as mil faces parecendo olhar para ela do alto.
O momento em que duas, das suas diversas mãos tocaram a mulher.
Lembrava do corpo da mãe se agitando. Ela gritava, mas o som não saia.
Do terror em seus olhos que lentamente se esvaia.
A loucura consumindo sua genitora enquanto o monstro saboreava.
A mãe olhava o abismo, e o abismo a olhava de volta.
Relembrava de como esteve ali, como uma plateia no camarote, sem se mover, sem gritar. Como se a vida estivesse esvaída daquele corpo assim como foi com sua mãe.
Pensava em como era uma garotinha tola que se culpou por não poder fazer nada enquanto via a aureola de sua vida ir embora diante da escuridão eminente.
Lembrava em como ficou ali parada por horas, paralisada, horrorizada, observando cada parte de sua genitora sumir.
Reviveu o momento em que a criatura finalmente se cansou e se foi. Em como a benção que lhe protegia sumiu, pois, sua criadora sumiu daquele mundo e plano.
Relembrou quando as primeiras lágrimas ameaçaram cair, mas continuava estática. Quando se levantou e tentou alcançar o lugar que sua mãe pereceu, mas seus passos eram mínimos ou inexistentes.
Então algo em seu corpo despertou e ela correu. Sem nunca alcançar seu lugar.
O espaço ao seu redor tremeu e a cada passo que dava se via em um lugar diferente.
O desespero enterrado a tomou. Quanto mais tentava, pior ficava. Se viu diante diversas paisagens, uma savana tropeçando em raízes, um deserto fugindo de gigantes e de si mesma, até mesmo o mar e seu abismo abaixo.
Todos aqueles lugares que ela relembrava, eram seu interior, eram ela correndo de sua realidade.
Fugiu por minutos, horas, dias, semanas. Um tempo que se distorceu para ela diante o surto de sua benção.
Se lembrava da angustia até o dia que conseguiu retornar a floresta, apática. Lágrimas já não caiam mais, gastara todas nas primeiras corridas. Já não sentia mais nada, até mesmo pensava que aquele era seu castigo por ser inútil.
Quando chegou a aquele lugar não celebrou, mas seus joelhos cederam.
E então ela viu. A memória que a puxou de cair no abismo. Uma figura feminina diante do que parecia ser um tumulo. Tal figura esbelta, coberta de tecidos finos enquanto cabelos negros como a noite esvoaçavam. A mulher se virou e a garota viu, uma figura serena, a definição de beleza e grandeza. Banhada pela luz e cercada pelas pétalas de ouro como uma deusa encarnada. Aquela era a rainha. A Rainha dos Sonhos, Diana.
Reviveu como diversas emoções passaram no rosto da mulher ao vê-la. Dúvida, o receio, a tristeza e a suavização. Ela estava triste por ela.
Lembra como ela correu até seu corpo fragilizado e a abraçou. Como dizia as coisas como um mantra.
"Sinto muito minha pequena Inay"
"Se eu fosse mais rápida"
"Você que só conhecia o sol e o calor, teve que conhecer o frio. Eu sinto muito"
Sentia os abraços que recebeu daquela mulher.
A sensação de como cada vez que a tocava, o caos em sua mente começava a sumir pouco a pouco, como se a rainha o sugasse. De como a apatia a deixava por um momento.
Como as lágrimas começaram a rolar sem controle. Lágrimas quentes de uma criança.
Inay lembra dos dias que se seguiram, no entanto, eles pouco importavam para ela agora. Reviver o desespero de seu pai e a tristeza ao reencontrá-la, quebrava os pedaços que lhe sobravam
Do tempo que passou com a rainha e a Ovelha Rosemary após semanas sem dormir.
Em como sua apatia cresceu mesmo tentando evita-la.
Se recordava dos anos que se seguiram e as memórias que a consumiram. Das vezes que voltava para os lugares enquanto tentava correr. Em como seu arredor apenas explodia se sentisse qualquer coisa.
Agora ela deita na grama sobre aquela mesma árvore dourada. Observa o mesmo céu que observava. Sem as doces sensações que antes sentia. Via o coelho apressado e o temia seguir, pois agora não seria mais um país das maravilhas já que nunca parou de fugir de si.
Lembrava do seu nome de batismo. Inay Dawnbringer. E do apelido que recebeu após aquela memória: A garota que olhou para o abismo e sobreviveu.
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RÉQUIEM - Oneshot
FantasyEle só podia correr daqueles que traiu e voltar para o caloroso abraço de deus.