Se havia algo que Flávia conhecia bem, era a sensação de poder morrer.
Como bem sabia, tudo chegava ao fim. O inverno frio acabava na primavera florida; a primavera florida terminava no verão caloroso; o verão caloroso esfriava no triste outono; o triste outono terminava no inverno frio. Era fácil, tentar entender os ciclos, tendo como base as estações do ano; mas estações não são vidas. Não duram tanto quanto uma deveria.
Vidas deveriam durar várias e várias décadas; quem sabe um século, como era o caso de alguns sortudos.
Os seres humanos deveriam passar por incontáveis primaveras, antes que fosse a hora de, finalmente, dar "adeus" e esperar a próxima etapa da jornada.
O problema era que, devido às incontáveis vezes que passou as madrugadas no pronto-socorro, vendo tantas vidas caminhando apressadamente para o final, ela sabia que havia um abismo enorme entre "dever" e "poder".
Todos deveriam viver por muito tempo, aproveitando o máximo que pudessem. Mas alguns não podiam. Não tinham tempo suficiente para aquilo.
Quando Flávia recebeu o diagnóstico de leucemia, após terminar a faculdade, ela sentiu que não teria tempo. Sentiu que, por mais que tivesse aproveitado o que pôde, não havia mais possibilidade de nada à sua frente. Nunca mais dançaria pole dance. Nunca mais tomaria banho de chuva. Nunca mais sentiria o sol banhar todo o seu corpo, como um beijo invisível. Nunca mais frequentaria um karaokê. Nunca mais veria sua família. Nunca mais conversaria com seus ouvintes.
Nunca mais estaria ali.
Mas, ainda assim, Flávia não tinha medo da morte, em si. Tinha medo do que viria após ela.
— Como assim, Bianca?
Havia um bolo formado em sua garganta.
Por mais que estivesse na terapia desde pouco depois do diagnóstico(obrigada por Paula Terrare, a princípio), ainda não havia superado a memória da doença. A memória de sentir-se doente, sentir-se como se houvesse um relógio gigante acima de sua cabeça, como uma bomba prestes a explodir, ainda não havia sumido por completo. E duvidava que sumiria.
— Eu nasci com um problema no coração, sabe? — Bianca começou, com a voz trêmula — Passei a minha vida toda em hospitais, praticamente. Meu problema se agravou, há um tempo, e eu fui colocada na lista de espera pra transplante. E, agora, conseguiram um transplante de coração pra mim.
Flávia soltou o ar que nem sabia que estava prendendo.
— E você tá com medo da cirurgia?
"Eu tô com medo de morrer nela." Confessou. "Eu já vou morrer, se não fizer; então, fazer é meu único jeito de sobreviver. Mas, se eu morrer... Vai ser como se eu nunca tivesse existido." A menina fungou, devia estar chorando. "Eu nunca fiz nada. Nunca! Se eu morrer, não vou ter deixado nada que faça alguém se lembrar de mim."
Flávia também teve medo do esquecimento. A ideia de, realmente, desaparecer, era terrível.
— Você tentou falar sobre isso com alguém da sua família, já? Ou com algum amigo?
— Não. — admitiu — Não é fácil falar com alguém sobre isso, pelo menos não com alguém que você conhece.
De fato, não era. Ela nunca fora capaz de falar sobre o que sentiu, durante os intermináveis dias, com mais ninguém além de sua psicóloga. No começo, sentiu como se fosse culpa sua, estar doente; como se houvesse vergonha naquilo. E ela era uma adulta, não podia nem imaginar como era para Bianca, que parecia mal ter entrado na adolescência.
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POSSO TE TIRAR DESSA ROUBADA?
FanficFlávia é uma radialista que ajuda alguns ouvintes com seus problemas, suas "roubadas"; mas, apesar disso, entrou na maior de todas elas: se apaixonar por alguém. [FlaGui | Short-Fic] (Capa: template disponível no Canva)