O último dia de Janeiro é o primeiro .A visão era vermelha , paredes , teto , chão . Luzes vermelhas , um túnel todo escarlate . Pulsátil . Meus pés se separavam do chão , subindo e descendo , dum, lup , dum lup . Com cada batimento minha cabeça se expandia e latejava . Estava no centro de um balão estreito , feito de uma teia transparente de artérias entrelaçadas que se juntavam em direção centrífuga num centro gelatinoso á minhas costas . Tentei observar ao redor , mas não vi além das paredes daquele casulo embrionário . Não podia me mexer , uma força líquida me puxava para o centro da cavidade . Vermelho .
Flutuava num mar viscoso e turvo quando senti um abraço quente e doloroso na espinha dorsal . Mordi minhas mãos , abri um pouco mais os olhos e vi meus dedos inchados e rugosos de tanta umidade , pequenos e macios . Fui perdendo forças . Ela ia perdendo vida . Não era eu, mas sentia como as mandíbulas de outra vida me arrancavam a carne que crescia em mim .
A vi desabrochar à vida , respirar , se afogar , nadar naquele líquido vermelho . Me senti vazia , seca , culpável . A perdi e não soube bem como .
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Capitulo 1
Queria te contar como cheguei até aqui e como consegui escrever nestas líneas tortas o quanto precisei de ti.
O barulho da rua me acordou e levantei-me da cama como uma sombra transparente e macia, escorreguei até a bancada da cozinha, aonde tinha deixado as sobras do café da manhã, e me deixei atravessar os sentidos pelo aroma sujo e azedo da pia com os pratos da semana inteira. Sabia que os tinha deixado de propósito e sempre arrumo me incomodar com a sujeira desmedida. Em ocasiões acordava tendo o mesmo pesadelo , uma menina com meu nome lavando a louça enquanto tremia com o barulho dos gritos dos pais de fundo .
Há um ano saí de casa e deixei para atrás meu corpo vazio, meu útero cheio de nodoas e meus olhos secos de tanto esfregar os dedos para limpar o barro do rosto . Ariel tinha me deixado um mês atrás, ele era a minha companhia na cama e na vida até então. Meu rosto esta ardendo e meu peito lânguido balança por baixo do vestido rosa, enquanto ando pela casa como um morcego fugindo da luz . Sei que foi mama Berta quem me deu este vestido que alias odeio.
Mama Berta sempre diz que o Ariel tinha aquela calma dos anjos, mas que por trás escondia um segredo maior que a queda luciferina, me contou que leu isso num livro da biblioteca a última vez que veio aqui, e que tem pessoas que gostam de parecer o que não são. As vezes a entendo. Ela conheceu Ariel umas semanas antes quando ele veio tomar café. Aquele dia eu estava sentada a mesa e ela preparava os ovos na cozinha . Ariel tomou seu café em silencio, e eu olhava para ele por baixo da franja do cabelo.
Enfim, não sei por onde ando agora, mas preciso contar que a dor no peito não escapa ainda desta gaiola de costelas, que a agonia me consome e me abraça no pescoço, que sobe e desce a passos agigantados e se detém em cima da minha caixa torácica e ri de mim a gargalhadas sonoras. Que não sinto a dureza do piso nas minhas solas e flutuo .
Hoje vi na janela aquele rosto sem olhos que sempre avisei. Ele fica por alguns minutos olhando a traves do cristal da janela empoeirado, observa nossos corpos na cama, a nossa nudez suja e suada, nossa respiração que se contrai ritmicamente e balança nossa existência e que inconscientemente define o umbral entre a vida e o exício.
As coisas que já vi são ínfimas para as que já experimentei.
***
Às vezes fico na cama olhando para a janela.
Sentei à mesa para escrever, já tinha esquecido como era. Alguns meses atrás havia começado esta mesma história, mas daquela vez algo crescia dentro de min, e não era exatamente uma ideia. Algo estava se agarrando a minha matriz, o fruto de Ariel e de todas as vezes que tinha subido em cima de mim e deixado seus fluidos aqui dentro. Lembro como era aquele humor viscoso e quente e sei que parece nojento.
Agora escrevo todos os dias e enquanto algumas letras e parágrafos se formam, bebo um café que fora preparado no dia anterior. Sentada a mesa para trabalhar, coloco uma mão em baixo do queixo para descansar e a outra no abrigo das pernas .Os óculos me observam ao lado do papel, falecidos. Por certo tempo fico escrevendo sem pensar, deixo a ortografia do lado e traço uma história frenética, sem parar.
O quarto continua bem iluminado e sempre bafejando a mofo de folhas e insetos moribundos, volto a descansar a cabeça na mão e desta vez por mais um instante. No momento seguinte , assustada , acordo daquele sopor e escuto um barulho estridente que vem da cozinha como algo se quebrando em mil pedaços e rapidamente meu pescoço gira e me deixa na direção da porta atrás de mim. Me levanto e coloco as pernas em movimento, com intenção de levantar o que tinha caído. Acredito que algum gato tenha entrado pela janela aberta e derrubado a pilha de vasilhas que continuavam sem ser lavadas. Quase que tive a vontade de pegar os óculos, mas estavam tão longe que deixei para trás e me encaminhei de novo à fonte do barulho, incomodada.
Dois ombros e uma cabeça careca logo em cima deles se esboçaram no meu campo visual, já estava no vão da entrada do cômodo quando a vi. A figura, aparentemente de costas, reproduzia alguns sons próprios de uma caverna, animalescos e infantis, um gemido arcaico e primitivo. Consegui ver que fazia algum movimento com as mãos e fiquei olhando com interesse, me deliciando a cada mudança que a criatura engendrava. Tentei me aproximar num impulso atrevido em pós de procurar a origem daquilo, e coloquei a mão no ombro dela. Estava tão quente que quase pensei em retirá-la, porem preferi sentir aquela dor, que de alguma forma já tinha experimentado antes. A mão ficou lá sobre o ombro ossudo e aparentemente não me estranhei com aquele toque inumano.
O novo visitante girou a cabeça na minha direção e deixando o corpo ereto ,flutuando , com a boca obscura escancarada continuo a produzir aquele barulho que agora reconhecia como de algum animal ou de crianças recém-nascidas; alcancei a definir algumas palavras impronunciáveis. Em seguida daquelas fauces agonizantes saiu um cordão branco que se projetou para fora, úmido, lustroso e se arremessou na minha direção. Abraçou meu pescoço , me sufocando, mas, espantosamente eu continuava a respirar com agonia me sentindo consolada por aquela ligação macabra.
Abri as narinas e senti um fedor de mil mortes , ele olhou para mim sem os olhos, sem eles nas orbitas, que eram duas manchas profundas , e sumiu após ter deixado em mim uma alegria e um sorriso desgraçado. No minuto seguinte estava sozinha na cozinha ,rodeada de pratos sujos para lavar, descalça e com o vestido rosa. No peito ,senti um alivio. Havia um cheiro de lavanda no ar e a pele do meu pescoço permaneceu ilesa .
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O LIMIAR DOS CORPOS
General FictionBruna , uma escritora no meio de um bloqueio criativo reflete sobre a vida e a obscuridade dela .