Acordei enrolada nos travesseiros no meio da cama bagunçada . Com sabor amargo na boca e um fio de saliva que caia do canto dos lábios . Tinha dormido a noite inteira me debatendo , sentido a chuva pular no teto e no vidro das janelas . As gotas se quebrando com o impacto da altura . Tentei lembrar aonde viajei nos sonhos, mas minha mente é uma planície cheia de grama infinita , vazia . Sei que estou sentido o cheiro de Ariel aqui na cama .
Fui até o cozinha com as pernas tremulas, e para minha surpresa tinha café recém feito na garrafa térmica . Quem teria feito ? Será que acordei antes e fiz e não consigo me lembrar de nada . Ainda não estava doida . Isso eu tinha certeza .
Bebi o café sentido a estranheza de sempre e olhei com receio para a pia no lugar que o visitante tinha estado algumas horas atrás . Será que não vem mais essa semana ? O que Deus pensaria destes encontros ? Não sou muito próxima a Deus , minha mãe era , e meu pai . Hoje eles devem estar do lado dele aonde seja que a gente vai depois de desacordar .
Lembro que devo ir visitar Mama Bertha . Tem vários recadinhos de papel enfiados pelo fenestra inferior da porta com a frase - estou de olho em você Bruna - alguns espalhados chegam até a cozinha . O que seria de nós mulheres se não nós tivéssemos umas a outras ? Os homens não se preocupam pela gente , a maioria só nos vê com o sexo estampado na testa , e com um manual que a mãe ensinou para eles de como tratar sua esposa "empregada " favorita . Não era o caso de Ariel, não até ano passado .
***
Me acerquei a porta da Bertha e fiquei parada enquanto batia , uns golpezinhos leves e lentos . Em seguida apareceu no vão da entrada a forma de uma mulher idosa cheia de roupas e lençóis com cheiro de naftalina . Os cabelos no meio dos rosto como arame farpado numa cerca mal ajeitada . Ela se afastou da entrada e me deixou entrar por fim .- Pode sentar no primeiro canto que achar . O Paul está hoje mais mudo que de costume . E a Raquel saiu cedo , não queria ficar com os pais hoje , ela acha que somos um peso para ela .
-Entendo - e com o canto do olho , vejo em cima da escrivaninha de Raquel uma foto de uma garotinha feliz rodeada pelos pais . Definitivamente Mamá Bertha e o senhor Paul . Ao lado na parede o diploma da formatura com o nome de Raquel e o ano . Fazia dez anos que trabalhava como Engenheira civil numa construtora da cidade .
Sentei no sofá de couro ao lado do Fiodor , que se espreguiçou ao me ver e rosnou baixinho como quem me vê pela primeira vez . Ele não gostava de mim, nem eu dele . Dizem que eles enxergam além de nós. Eu solia gostar de animais , mas hoje não suportava o cheiro.
Mama Bertha está vindo com uma xícara de café fumegante, a entrega a mim e senta de frente numa poltrona que só ela usa e que range quando ela se deixa cair em cima . Olho de novo para o diploma na parede e percebo que está amarelo , no vidro que o protege vejo o reflexo do Paul sentado na cadeira de balanço com o olhar no infinito ,os olho secos sem brilho , o canto da boca deformado numa careta paralítica e uma mosca sentada no lábio inferior lambe a saliva . Ela percebe que estou demasiado calada e pergunta .
- Como estão as coisas hoje queridinha ?
- Do mesmo jeito de sempre - respondo sem deixar de olhar para o Paul .
- Você conhece ele . Não deixa que ninguém toque nele . Eu mal consigo trocar algumas palavras desde que sofreu a apoplexia .O Senhor Paul tinha sobrevivido ano passado a um ataque vascular encefálico que o deixou sem voz e sem movimentos faciais e numa catatonia existencial que Mamá Bertha chamava de frescura . Eu me perguntava para aonde vamos quando não conseguimos mais viver nesta realidade ? O que fazemos quando os barrotes da mente se fecham para sempre e os seguramos com as mãos artríticas da velhice e não cedem ? As vezes eu queria falar para ele que sabia o que estava sentido . Quando o mundo nos abandona , e eles não tem obrigação nenhuma de estar do nosso lado, queremos nos afastar de todo e apenas viver dentro da nossa cabeça , guardados como um verme no seu buraco na terra .
-Me conte como estão as coisas com o Uriel?
- Ele cada vez mais longe de mim, chega em casa e só fala com ele mesmo , eu sou uma criatura inexistente- falar sobre isso me deixa agoniada .
Percebo que a casa da Berta continuava cheirando a naftalina .
- Eu guardo algo para você - ela falou e ficou me encarando esperando minha reação - mas não sei se é o momento oportuno para te entregar .
- O que seria tão intrigante assim ?
- Tenho observado você pairar não sua casa e nada vai trazer ele de volta . Peguei carinho com você garotinha - ela me chamava assim toda vez que sentia a vontade de me agradar .
- Estive isolada , eu sei , mas vou ficar bem , o bebê está perfeito , não sangrei mais e estou tomando os comprimidos .Tinha dois anos que vinha tomando remédios receitados pelo psiquiatra . Acabei tendo crises de pânico após terminar a faculdade . Mas sempre soube me controlar . Não dizem que nos tornamos reféns dos médicos ao aceitar os tratamentos ? Eu já era uma naquela época . Uriel me ajudava no meio da madrugada quando tinha as crises de ansiedade , eu queria pular para a rua e me livrar do meu corpo , a sensação de imaterialidade era enorme , não cabia dentro de mim , flutuava , a mente queimava e o peito rasgava em trezentos pedaços . Ariel sem dormir do meu lado ficava atônito, desesperado . Eu tinha pena dele .
Voltei a sala da Mama Bertha após ter ficado um minuto calada como uma figura de cera . peguei o jornal que ela tinha decidido me entregar de uma vez .
-Ai tens tudo que precisas - segurou o papel por alguns segundos com medo de ficar se sentindo culpada.
Concordei e sem pensar fui ate a porta para sair , girei a maçaneta e abri para o corredor , voltei a cabeça para ter certeza que estava saindo da habitação e vi a boca do senhor Paul cheia de moscas entrando desesperadas , brigando umas com as outras para comer as suas entranhas . Tal vez tenha imaginado porque quando fechei e abri os olhos novamente o velho paraplégico estava com os lábios fechados e um fio de saliva transparente rolando pelo queixo.
De repente senti a porta a minha frente bater ao se fechar . Era a porta do meu apartamento com certeza . Eu não iria estar sozinha hoje mais . Havia um cheiro de lavanda no corredor escuro .
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O LIMIAR DOS CORPOS
General FictionBruna , uma escritora no meio de um bloqueio criativo reflete sobre a vida e a obscuridade dela .