Capítulo 2

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     Após alguns dias senti bater na porta. Meu lar agora, que eu tinha alugado por alguns centavos, na verdade metade da renda que eu recebia cada mês ,era o suficiente para me abrigar e sentir confortável com os meus pesadelos. Era uma cozinha e um cômodo grande aonde só cabiam uma cama e a mesa. Era fria, mas bem iluminada, com várias janelas voltadas para a praça. Aqui eu me sentia protegida. Lembro que quando me mudei Ariel deixou um resmungo sair pela boca – sujo aqui – ele teria dito .

    Mas eu gostei e fiquei. Coloquei algumas plantas no muro da janela central e a máquina de escrever na mesa, ali eu escrevia e tomava minhas refeições. Sempre deixava algumas migalhas de pão cair no chão ao redor da mesa e um batalhão de formigas vinha comer desajeitadamente . No inverno as janelas ficavam abertas e eu decorria a casa com o meu vestido rosa quase transparente, ia até a ventana e ficava horas esperando a imaginação tomar conta dos meus pensamentos, estradas, florestas, cabeças, olhos, escuridão, vão.

- Abra esta porta!!! – Um grito veio de fora, ao outro lado da entrada, a voz era seca.

    Fui abrir a porta e deixei entrar o que fosse que estivesse ali. Mama Berta tinha o cabelo mais comprido que o mês passado, parecia uma lesma gigante de tão escuro e brilhoso. Carregava o Fiodor no colo e entrou como um vendaval e sentou-se à mesa me encarando como se tivesse esquecido que morava comigo. Na verdade a casa dela ficava justo na frente da minha.

    Eu a tinha conhecido o ano passado quando um dia me detive nas escadas para tomar folego, meu apartamento ficava no quinto andar e o elevador sempre estava quebrado -as vezes eu odiava ficar com pessoas num espaço de um metro quadrado- e ela veio correndo com uma taça de café numa mão e o Fiodor na outra, me levou até sua casa e fez todas as perguntas que se esperam de uma vizinha como a Berta.

- Ontem esperei por você o dia inteiro – ela falou rispidamente.

- Eu esqueci mama, prometo ir nesta semana, a minha barriga tem doido e preferi não incomodar.

-Teve de novo aquele sangramento?

    Não respondi e fiquei olhando pela janela, de rosto voltado para ela, não sabia se eu estava precisando de ajuda, mas imaginei me pendurando do vão e deixando o corpo cair ao vazio. Eu não quero nem preciso contar o que me aconteceu ontem , ao final já estou familiarizada com essa visita .

- Amanhã estarei melhor, não precisa se preocupar, meu ventre continua crescendo normalmente- falei- preciso terminar o trabalho aqui.

-Estarei do outro lado do corredor, estou de olho em você Bruna. Eu vim correndo quando senti a porta bater e vi pelo olho mágico a sombra do Ariel descer as escadas .

- Ele não está aqui mais , você imaginou ter sido ele - respondi sentido o sabor amargo da mentira na boca .

    Havia dois meses que sentia minha barriga crescer. Cresceu rapidamente como massa de pão na bancada da padaria, meus braços esqueléticos contrastavam com o vulto arredondado que sobressaia na minha frente. Nada se mexia, nada em movimento. Um pensamento tal vez. Eu sinto alguns movimentos , algo se mexendo ainda . Passo as mãos as vezes e experimento a dádiva da maternidade . Mas o sangramento levou esse sentimento agora . Ariel ficou calado a última vez desse episódio . Ele me culpava por tudo , eu era o motivo das angústias dele .

    Deixei a mama Berta sair e o Fiodor ficou me encarando na saída, os olhos dele de pupilas fendidas me julgavam sempre, ele miou e retorno a cabeça junto ao corpo com um desdém característico.

    Ela se foi, o cheiro do gato ficou na mesa, intenso, senti o estomago revirar e dar uma cambalhota. Fui até a pia do banheiro engasgada com a própria saliva, tentando não tirar para fora o café da manhã, mas a vontade era enorme. Enfiei um dedo na garganta e além, tossi forte até arranhar a mucosa e sangrar. Senti uma bola vindo de dentro do meu peito, cuspi e vi assombrada um emaranhado de pelos no cano do lavabo manchado de sangue, definitivamente do esôfago.

- Preciso para com isso – e me deitei nos azulejos gelados do banheiro de olho nos frascos brancos na vitrine acima da pia, cheios de comprimidos que me encaravam.
Na frente do espelho só tinha um frasco de comprimidos . E estavam vazios , cheios de ar .

O LIMIAR DOS CORPOSOnde histórias criam vida. Descubra agora