Eu conheci Ariel numa entrevista de emprego para um jornal da cidade , ele servia o café para o grupo de pessoas que estávamos ali esperando a nossa vez . Havia umas vinte pessoas num salão de quatro metros quadrados ornado por quadros abstratos pendurados em paredes brancas . Ele veio ate mim e notou meus olhos espiando os dele . Eu sabia que deveria interatuar para disfarçar minha imprudência , mas fiquei muda e deixei para lá .Ao final da entrevista soube que não conseguiria a vaga, tinha sido antipática demais . Sai do prédio com a sacola de papeis embaixo do braço e sentei na beira da fonte na praça . Eu olhava a agua suja ir i vir , sempre a mesma fazendo trajetos circulares , alguns peixes marrons se mantinham vivos naquela poça . Não queria chegar em casa mais uma vez com uma negativa de emprego . Coloquei a bolsa do meu lado e me entreguei a paz daquele lugar .
Passaram alguns minutos e senti uma batida nas costas , alguém tinha me acertado com uma bola ou algo duro. Olhei para trás e vi ele rindo de mim como uma criança, vestia uma calça jeans desgastada nos joelhos e nos bolsos e uma camisa cheia de rugas . Pela primeira vez eu tive vontade de arrumar aquele jeito do Ariel.
- Quer me acompanhar a tomar um café ?- perguntou de longe - sei que não foi bem lá com os senhores de cinza .
Sacudi a cabeça e voltei a olhar para a agua e ele se acercou devagar . Sentou-se do meu lado e pegou na minha mão , um toque úmido . Afastei rapidamente meu braço, fugindo do contato dele Era um estranho , não se conversava com estranhos, havia aprendido na escola . Aos meus 21 anos era o mais perto de um homem de verdade que já tinha ficado. me perguntava o que o tinha feito voltar atrás de mim e porque estava falando comigo. Eu estava toda desarrumada , com olheiras e o cabelo bem emaranhado , ate parecia que queria ser escolhida numa vaga para uma revista local minutos atrás .
-Esta parte da cidade é maravilhosa mesmo e você não parece conhecer as bondades de Stainfield- estava determinado a não me deixar sozinha .
Concordei em ir na padaria mais próxima e beber o café , precisava me distrair um pouco e colocar algo quente no estomago , não tinha tomado nada ao sair de casa pois sempre vomitava quando ficava tensa. Andamos um do lado do outro em silencio , eu afastava as folhas secas do caminho e ele olhava para as pessoas que passavam apresadas , sempre com um sorriso nos lábios prestes a falar alguma coisa . por fim disse
-Você e mesmo jornalista ?
-Sim. na verdade sou escritora , mas já trabalhei num jornal pequeno na cidade anterior .
ele assentiu com a cabeça , voltou os olhos para o final do passeio e perguntou novamente .
-Há muito tempo que veio morar aqui?
Esse tipo de perguntas me traziam a pior das lembranças , parecia que eu tivesse fugido de algum lugar , e estava mesmo. minha mãe e eu tínhamos tentado nos afastar do meu pai . ele batia nela todas as noites e de vez em quando também o fazia em mim . quem com a minha idade resolve aguentar tal tipo de maltrato? de fato nos duas dávamos um jeito , e ele definitivamente não era culpado . Há 2 anos lutávamos os 3 contra o Alzheimer .
- Decidimos nos mudar para Stainfield após meu pai ter piorado muito , ouvimos falar de uma clinica de reabilitação muito boa para casos de demência , e aqui estamos .
-Oh, entendo , desculpa por ter sido uma pergunta atrevida - ele falou colocando verdade no tom.
-Não se preocupe com isso, estamos bem resolvidos . ah meu nome e Bruna - e estendi a mão para ele - muito prazer .
- Me chamo Ariel , Bruna , um nome e tanto , combina com você . Ah não sei , realmente estou tentando ser fofo e não estou conseguindo - fez uma careta de vergonha , o sangue subiu as bochechas .
Chegamos ao café e sentamos do lado da janela , era uma época fria , mas o calor que saia dos fornos da padaria esquentava a pele . Conversamos mais sobre mim e meu pai , contei como tinha sido difícil nos mudar e achar trabalho novo . Conseguíamos nos manter com a pensão do meu pai , minha mãe nunca trabalhou, o que piorava as coisas , e eu tinha algumas economias no banco . Eu queria encontrar um pouco de paz nesta cidade , colocar meu pai na clinica e me dedicar a um trabalho tranquilo enquanto retomava meus escritos .
Ele decidiu me ouvir atentamente e também contou um pouco de si. Ariel trabalhava fazendo bicos de garçom para eventos de empresas e aniversários . Morava sozinho num apartamento de frente ao rio que cortava a cidade ao meio . Soube também que não gostava de gatos . Falamos por mais uma hora, enquanto tomávamos café, eu tinha pedido uma caneca de chocolate quente e minha mão segurava-a com força , com medo de deixa-la escapar . Acabei minha bebida e fiz um gesto de ir embora , ele me olho com tristeza e falou subitamente .
-No próximo encontro quero te levar ao maior museu de arte da cidade - colocou a xicara de café na mesa - o cemitério .
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O LIMIAR DOS CORPOS
General FictionBruna , uma escritora no meio de um bloqueio criativo reflete sobre a vida e a obscuridade dela .