Capítulo 1 (#2)

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quem é você?
Como o restante da casa, o quarto estava intocado. As paredes eram de um tom pálido de rosa, e o teto, que tinha uma inclinação acentuada acompanhando o telhado, era da mesma cor. A cama continuava encostada na parede, embaixo de uma grande janela; o colchão permanecia intacto, embora sem roupa de cama. Havia uma frestinha de janela aberta, e cortinas de renda já apodrecendo ondulavam na brisa gentil que entrava. Uma mancha escura na pintura ali embaixo, onde a chuva tinha se infiltrado por anos a fio, entregava o abandono da casa. Charlie subiu na cama e fechou a janela, que resistiu um pouco, com um rangido. Depois ela se afastou e voltou sua atenção para o restante do cômodo, para as criações do pai.
Em sua primeira noite na casa, Charlie teve medo de dormir sozinha. Não se lembrava da ocasião, mas o pai lhe contara tantas vezes que a história acabou quase virando uma lembrança. Charlie se sentou na cama e chorou, desesperada, até que ele foi ao quarto, a pegou no colo e, com um abraço, prometeu que ela jamais ficaria sozinha de novo. Na manhã seguinte, a levou pela mão até a garagem, onde começou a trabalhar, determinado a cumprir a promessa.
Sua primeira invenção foi um coelho roxo, que ficara cinza com o tempo, por causa da exposição ao sol. O pai o chamara de Theodore. Era do tamanho de uma criança de uns três anos - o tamanho da própria Charlie, na época - e tinha pelo macio, olhos brilhantes e uma elegante gravata-borboleta. Não fazia nada de muito complexo, apenas acenava a mão, inclinava a cabeça para o lado e dizia na voz do pai: "Eu te amo, Charlie." Mas seria um ótimo vigilante noturno, alguém para fazer companhia quando a menina não conseguisse dormir. Tantos anos depois, ela encontrava Theodore ali, sentado na cadeira de vime em um canto afastado do quarto. Charlie acenou para ele, que, desligado, não respondeu ao gesto.
Depois do coelho, os brinquedos foram ganhando mais complexidade. Alguns deram certo, outros não; alguns pareciam ter falhas permanentes, enquanto outros simplesmente não atraíam a imaginação infantil de Charlie. Esses, ela sabia que o pai levava de volta à oficina para aproveitar algumas partes, embora ela não gostasse de vê-los sendo desmantelados. Mas os que ficavam, os que ela amava, estavam
ainda ali, olhando para sua dona com grande expectativa. Sorrindo, Charlie apertou um botão ao lado da cama. Com certa resistência, ele cedeu, mas nada aconteceu. Ela voltou a apertá-lo, dessa vez segurando por mais tempo, e, do outro lado do cômodo, com o ruído desgastado de metal arranhando metal, o unicórnio começou a se mover. O unicórnio (Charlie lhe dera o nome de Stanley por alguma razão que já não lembrava mais) era feito de metal e tinha sido pintado de branco com acabamento brilhoso. Deu a volta pelo quarto sob um trilho circular, balançando a cabeça para cima e para baixo, o pescoço rijo. O trilho guinchou quando Stanley fez uma curva e parou ao lado da cama. Charlie se ajoelhou no chão e acariciou o unicórnio. A tinta reluzente estava arranhada e descascando, e o focinho dele tinha perdido a batalha contra a ferrugem. Os olhos continuavam vivazes, imunes à decadência.
- Você está precisando de uma pintura nova, Stanley - comentou Charlie.
O unicórnio continuou olhando para a frente, inerte.
Ao pé da cama ficava uma roda. Feita de pedacinhos de metal unidos com solda, aquilo sempre a fizera pensar em alguma peça de um submarino. Charlie a virou. Ficou emperrada por uns segundos, depois cedeu, girando como de costume, e do outro lado do quarto, a menor porta do armário se abriu. De dentro dele, presa a seu trilho, Ella saiu desfilando, uma boneca do tamanho de uma criança, levando uma xícara e um pires nas mãozinhas como se oferecendo a um convidado. O vestidinho xadrez de Ella continuava impecável, e os sapatos de couro ainda brilhavam; talvez o armário a tivesse protegido dos estragos da umidade. Charlie tivera roupas idênticas um dia, quando ela e a boneca eram da mesma
altura.
- Oi, Ella - cumprimentou Charlie, baixinho.
À medida que a roda ia fazendo o movimento reverso, Ella retornava para o armário, e a porta se fechou depois que a boneca entrou. Charlie a seguiu. Eram três armários, que foram construídos alinhados à inclinação do teto. Ella morava no menor, que tinha cerca de um metro de altura. Ao lado ficava o segundo, uns trinta centímetros mais alto, e depois o terceiro, o mais próximo da porta do quarto, que ia até o teto do cômodo. Charlie sorriu, recordando.
"Por que é que você tem três armários?", perguntara John na primeira vez que foi à casa. Ela olhou
para ele, confusa.
"Porque sim, ué", respondeu, enfim. Apontou, na defensiva, para o menor deles. "Mas aquele ali é da Ella", acrescentou. John assentiu, satisfeito com a explicação.
Charlie abriu a porta do móvel do meio - ou tentou. Estava trancada. Ela a sacudiu algumas vezes, mas desistiu sem muita convicção. Continuou agachada e olhou para o armário mais alto, seu armário de mocinha, que um dia teria tamanho para usar. "Não vai precisar dele até estar mais crescidinha", seu pai costumava dizer, mas esse dia nunca chegou. Embora a porta estivesse entreaberta, Charlie não quis mais
saber. Não estava se abrindo para ela; era só a ação do tempo.
Quando fez menção de se levantar, Charlie notou algo reluzente, meio escondido sob a porta trancada do armário do meio. Inclinou-se para pegar. Parecia um pedaço quebrado de uma placa de circuito. Ela deu um sorrisinho. Houve uma época, muitos anos antes, em que poderia encontrar porcas, parafusos, sucatas e partes avulsas por todos os cantos da casa. O pai sempre tinha alguma pecinha solitária escondida nos bolsos. Carregava para cima e para baixo os projetos em que estava trabalhando, os deixava em algum lugar e depois esquecia onde, ou ainda pior: guardava algo "para não perder" e
acabava nunca encontrando. Havia também alguns fios de cabelo da menina presos no pedaço quebrado de placa; ela os desembolou da pecinha de metal com cuidado.
Finalmente, como se viesse adiando o momento, Charlie cruzou o cômodo e pegou Theodore. O sol não tinha desbotado as costas do brinquedo como fizera com a parte da frente; ali, ele permanecia do mesmo tom escuro de roxo que ela lembrava. Apertou o botão na base do pescoço, mas ele continuou flácido, sem vida. O pelo estava puído, uma das orelhas, quase solta, presa apenas por um fio apodrecido, e pelo buraco que se formava Charlie via a placa verde lá dentro. Ela prendeu a respiração, tentando escutar algo, temerosa.
- Eu t... mo... lie - disse o coelho com ruídos hesitantes e quase inaudíveis, e a garota o colocou no chão, o rosto quente e o coração apertado.
Não esperava ouvir a voz do pai outra vez. Também te amo.
Charlie olhou ao redor do quarto. Quando criança, aquele era seu mundo mágico particular, e ela era possessiva com ele. Apenas alguns amigos escolhidos a dedo tinham permissão para entrar. Ela foi até a cama e colocou Stanley no trilho de novo. Saiu do quarto, fechando a porta antes que o unicórnio
pequenino chegasse ao seu destino.
Saiu da casa pela porta dos fundos e parou diante da garagem que funcionava como oficina do pai. Meio enterrado no cascalho a poucos passos adiante, Charlie pegou um pedacinho de metal. Tinha uma articulação no meio, e ela abriu um sorriso ao empurrá-la para a frente e para trás. É uma articulação de
cotovelo, pensou. Para quem devia ser?
Charlie estivera ali naquele ponto do quintal muitas vezes. Fechou os olhos, e as lembranças a invadiram. Voltara a ser uma menininha, sentada no chão da oficina do pai, brincando com pedacinhos de sucata de madeira e de metal como se fossem blocos de montar, tentando construir uma torre com peças irregulares que não se encaixavam. A garagem era quente, e ela estava de short e tênis, a fuligem
grudando em suas pernas suadas. Quase sentia o odor pungente e metálico do ferro de solda. O pai estava por perto, nunca saindo de vista, trabalhando em Stanley, o unicórnio.
O focinho ainda estava inacabado: um lado era branco, brilhante e simpático, com um reluzente olho castanho que quase parecia enxergar. A outra metade era apenas placas de circuito e partes de metal. O pai de Charlie olhou para a filha e sorriu, e a menina também sorriu, se sentindo amada. Em um corredor escuro atrás dele, quase visível, estava pendurado um aglomerado de membros metálicos, um esqueleto retorcido com olhos prateados ardentes. De tempos em tempos, tinha um espasmo esquisito. Charlie tentava não olhar para ele, mas enquanto o pai trabalhava e ela se distraía com os brinquedos improvisados, seu olhar acabava sendo atraído para aquele canto. Os braços e as pernas, contorcidos, pareciam quase debochar dela, feito um bobo da corte sombrio, e ainda assim havia algo naquela confusão que sugeria uma dor imensa.
"Papai?", chamou Charlie, e o pai não tirou os olhos do trabalho. "Papai?", repetiu ela, com mais urgência, e ele se virou para a filha devagar como se não estivesse presente de corpo e alma naquele mundo.
"Está precisando de alguma coisa, amor?"
Ela apontou para o esqueleto de metal. Dói?, era o que queria perguntar, mas quando encarou o pai, descobriu que não conseguia. Balançou a cabeça.
"Nada, não.

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⏰ Última atualização: Feb 14, 2022 ⏰

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