1 • Um segredo para três

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Ilha de Tiztia, Mar do Sul.
Dez anos após a fuga.


Os sons e cheiros da vila eram como uma injeção de alegria para a pequena Lyn Hazhur. Correndo com seu melhor amigo, Hendrik Kan, entre as pernas ocupadas dos camponeses e as barracas da venda, ela absorvia cada cor e detalhe do lugar. Passava tanto tempo reclusa em casa que quando saia, apenas queria descobrir o mundo inteiro de uma só vez. Tinha mesmo uma centena de coisas sobre as quais era curiosa, mas de todas elas, não havia dúvida que a mais intrigante era o mar.

Para a infelicidade do pai, o protetor e restrito Balthar, Lyn queria ver a praia sempre que escapava de casa, apesar das ordens claras para ficar longe da água. Sua irmã mais velha, Calista, havia sido incumbida da missão de impedi-la de desobedecer às regras, mas nem sempre tinha muito sucesso em sua tarefa. Quer quisesse ou quer não, sempre acabava correndo atrás da caçula saltitante em suas travessuras, exatamente como fazia agora.

No fundo, por mais que não quisesse admitir, Calista até mesmo gostava da brincadeira. Era apenas dois anos mais velha que Lyn, mas a ausência da mãe lhe encarregara de um papel maternal que não conseguia evitar ou esquecer. Perto da irmã — que era uma criança na mais pura e completa definição da palavra — seus doze anos pareciam cem; era uma alma velha demais. Por isso, vestindo seu papel protetor, ela reprimiu todos os sorrisos que o pique-pega poderia lhe proporcionar e acolheu sua melhor expressão zangada. Sabia que os jogos inocentes de Lyn sempre as levavam para o último lugar onde deveriam estar.

— Lyn! Hendrik! — gritou para as crianças que disparavam no caminho de pedras brutas. O cheiro de peixe cru e múltiplos temperos era vívido como o sol queimando sua cabeça na quente ilha de Tiztia. — Esperem! Voltem aqui! — pediu novamente.

A alguns metros de Calista, seus fugitivos pararam e virando-se para ela, acenaram com sorrisinhos travessos. Então, Lyn voltou a correr e com isso, também o fez Hendrik. Ele era sempre seu cúmplice e sendo vizinhos, os três acabavam por fazer tudo juntos. Brincavam, choravam e riam um com o outro como faziam com mais ninguém.

Parando um segundo para respirar antes de voltar a correr, Calista permitiu-se observar a vista da vila. Pessoas perambulavam entre as casas e os estabelecimentos de madeira, nunca estacionando na vida agitada. As bancas e barracas da venda estavam postas e como uma típica ilha pesqueira, frutos do mar estampavam o cardápio por todas as partes, vindo aos montes em carroças e redes. Na frente de uma taverna, músicos entoavam a melodia alegre que, junto às vozes altas dos vendedores, já parecia fazer parte do horizonte.

Finalmente se deixando sorrir, Calista quase dançou enquanto voltava a andar. Nunca contara a ninguém, mas amava dançar, talvez tanto quanto adorava deitar em sua cama para ler sobre espécies marinhas ou escrever. Ainda arriscou alguns rodopios, porém, quando percebeu que perdera seus fugitivos de vista, arregalou os olhos e voltou para sua guarda.

Buscando os companheiros, a mais velha os achou já na praia, brincando de pique-esconde entre os barcos atracados na faixa de areia. Indo ao seu encontro, ela desceu as escadas errantes do paredão de pedras que protegia a vila do mar. As ondas já reverberavam contra algumas formações rochosas e insinuavam a maré muito alta que viria. Somente um ou dois pescadores estavam na praia e em pouco tempo, ninguém se atreveria a estar, pois as preias-mares sempre traziam ao leste de Tiztia visitantes muito desagradáveis: as torpesas.

Vindas da Fossa dos Corais e desviando da corrente marítima quente do vulcão submerso Tiaklan, aquelas criaturas assombravam os pesadelos dos pescadores e da população da ilha. Com seus corpos longos de cobra e uma grande boca cheia de dentes afiados, as torpesas eram predadores de peixes e, se em grande número, de coisas maiores... como pessoas. Calista lia muito sobre elas e ainda que nunca tivesse visto uma, estava certa que não queria; e das suas razões para não entrar na água, essa ainda era a menos importante.

A Joia AbissalOnde histórias criam vida. Descubra agora