2 • O ouro dos mortos

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Ilha de Gaheia, Mar do Sul.
Vinte e um anos após a fuga.


— Ah, nada como ouro... especialmente ouro sem dono.

A voz de Hendrik ressoou preguiçosa e satisfeita pelo quarto pequeno e escaldante, seguida do barulho do seu corpo caindo sobre a cama coberta de moedas brilhantes e joias. A frieza do metais era crua nos lugares onde pressionavam sua pele, mas ele não se importava. Adorava a sensação da riqueza, o cheiro de maresia impregnado em cada um daqueles artefatos e, ainda mais, o dinheiro que eles renderiam. De pálpebras cerradas, ele deliciou-se no seu pequeno mar de ouro até que, abrindo os olhos, avistou as únicas coisas que amava mais que os prazeres da vida: Calista e Lyn.

As irmãs observaram com graça a cena de Hendrik esbanjando-se em riqueza como um rei, ainda que dentro daquele cômodo pequeno e nada confortável. Tudo que compunha o quarto que haviam arrendado — em uma estalagem de qualidade muito duvidosa — era uma cama de casal aos pedaços, um banco e uma pequena mesa tão velha quanto. O teto baixo e inclinado parecia deixar tudo ainda menor, e o ar quente não circulava no lugar desprovido de janelas. Somente uma escotilha acima da cama garantia que eles não morressem sufocados ou cozidos no calor descomunal do leste da ilha de Gaheia.

Os três amigos se perguntavam como era possível que o clima pudesse ter mudado tanto da amena e agradável ilha de Bedre, onde haviam estado antes, para o caldeirão em que se encontravam agora. O lugar não se parecia em nada com as outras ilhas do Mar do Sul que eles conheciam tão bem, sempre ensolaradas e quentes, mas perfeitamente toleráveis. Ali, era a situação quase insustentável: de dia, o sol queimava suas cabeças; à noite, o vento vindo do mar era denso e morno, assim como as próprias águas.

A corrente marítima quente vinda do Tiaklan era a responsável pelo clima escaldante de Gaheia e, por isso, Calista pensava que os humanos e sua guerra também o eram. Afinal, a Fossa dos Corais e tudo nela não existiam antes da Guerra Sangrenta, quando os homens saíram do Continente em seus navios e durante cinquenta anos, batalharam com os nírens sob o pretexto de conquistar as ilhas de Dheia que intitulavam suas. Entretanto, todos sabiam que, na verdade, tudo não passara de medo e ódio.

O rei humano, logo após descobrir a existência do povo do mar nas primeiras viagens em navios, temeu que os poderes e a riqueza deles se tornassem uma ameaça para o Continente. Então, apesar de perceber a natureza pacífica dos nírens, determinou que eles fossem expulsos das ilhas. Eles tinham magia e se transformavam em seres marinhos. Não eram totalmente humanos. Por isso, para o rei, eles nada mais eram que monstros que deviam ser combatidos.

Apesar da resistência, os nírens não podiam lutar contra a carnificina e fugiram das ilhas próximas ao Continente. Sua Rainha usou todo poder que lhe restara para erguer a Fossa dos Corais, dividindo Dheia em dois mundos imiscíveis: os mares humanos e os mares inominados. Assim, poucos nírens restaram em sua antiga casa, escondendo-se em meio à multidões como a mãe que Calista e Lyn não se lembravam ou como elas mesmas, que sendo metade de cada raça, muitas vezes não pertenciam a lugar algum.

Chegava a ser irônico que a Guerra que os próprios humanos haviam causado os tivesse rendido monstros, como as torpesas, e correntes marítimas quentes que matavam os peixes e, consequentemente, sua pesca em Gaheia. Ainda assim, a ilha era densamente povoada e se ocupava do comércio, tornando-se uma das principais terras do Mar do Sul, cheia de tesouros para aqueles três amigos...

Especialmente debaixo d'água.

O mar de Gaheia possuía uma quantidade considerável de navios naufragados pelo calor atordoante, o que era perfeito para o negócio que Calista, Lyn e Hendrik desenvolveram. Na verdade, talvez muitos não chamassem assim o saque de embarcações arruinadas no fundo do mar, mas nenhum dos três se importava.

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⏰ Última atualização: Jun 16, 2022 ⏰

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