Capítulo I

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– capítulo I -


Era uma tarde copiosamente chuvosa, dessas típicas do final da primavera. Não que isso seja um fato relevante na história, mas de certa forma a chuva me agrada, acalma, acolhe. Talvez seja só um mecanismo de associação, identificação, já que grande parte de mim vive em uma tempestade, em uma busca interior insaciável. Ou apenas faça parte de um entre tantos outros devaneios. Fica a seu critério, mas vamos ao que interessa, ao motivo por eu estar escrevendo estas linhas:


Eu estava na frente do local onde moro, um prédio grande e antigo, típico do centro paulistano. Estava em pé, segurando o guarda-chuva e o aguardando, pacientemente. Porém, desconfortavelmente, diga-se de passagem. E o motivo do desconforto não era nada mais nada menos do que uma botinha preta de salto alto, uma saia mais curta do que eu usaria em sã consciência e uma blusa branca, dessas sem manga. Uma hora ou outra eu teria que abandonar o moletom, a calça jeans e o tênis surrado, como minha mãe gostava de lembrar, e talvez ela estivesse certa, ainda que eu sentisse que aquela não fosse a hora.


A rua da Consolação estava incrivelmente calma, quase monótona. Quando estava certa de que a melhor opção era voltar para dentro de casa e trocar a bota por uma sapatilha (talvez trocar todo o conjunto de roupa também), o Gol vermelho apontou na esquina e eu sorri para mim mesma. Ele ainda não podia ver meu sorriso, mas eu estava ansiosa. Mal podia esperar por aquela noite. Ele estacionou o carro na vaga em frente ao meu prédio e foi então que parti em sua direção, tomando o cuidado de não tropeçar em minhas próprias pernas, que tentavam a todo custo se equilibrar naquele salto agulha.


Ricardo saiu do carro com um sorriso galanteador, me cumprimentou com um selinho nos lábios e deu a volta para abrir a porta do passageiro. Eu entrei. Ele era alto, beirava os dois metros de altura e estava todo elegante em sua calça jeans escura, camisa branca e cabelo espetado pelo gel. Se eu o bem conhecia, ele havia passado horas no banheiro ajeitando aquele cabelo.


– Está pronto?! – perguntei ansiosa, sem conter a empolgação, encarando-o nos olhos antes que ele desse partida no carro.


– Acho que sim! – o rapaz me respondeu com um brilho único nos olhos esverdeados. – Se importa se, antes de irmos para o barzinho, passarmos no Shopping Ibirapuera para buscar minha irmã?! Ela retornou hoje da França...


– Não, claro que não me importo! – falei de imediato. – Sem problemas, finalmente vou conhecê-la! – Sorri e então seguimos em direção à Avenida Brigadeiro Luiz Antônio.


Ricardo e eu não éramos um casal típico, apesar de parecermos. Ao menos, essa era a visão que eu tinha em minha mente. Estávamos juntos há sete meses e desde então não havíamos brigado uma única vez. Ele era três anos mais velho que eu, já era formado, tinha emprego fixo e carro próprio, enquanto eu ainda estava no segundo ano da faculdade, lutando por uma bolsa auxílio de estágio. Diferenças à parte, tínhamos muito em comum. Gostávamos dos mesmos filmes, seriados – ele me apresentara The Big Bang Theory, Dexter, Game of Thrones e The Walking Dead –, suco de maracujá e chocolate. Ah, chocolate! Antes dele, eu nunca havia conhecido homem algum que gostasse tanto de chocolate assim. O que, para mim, era ótimo, já que nossos passeios sempre acabavam em uma fábrica de chocolate nova ou um chocolate quente no final do dia. Tínhamos também o mesmo gosto musical, as mais diversas variações do rock, o que facilitava muito nosso entendimento, além dele me acompanhar nas aulas de dança de Lindy Hop. Digamos que eu não podia reclamar, ele era tudo que eu havia buscado ao longo dos meus dezenove anos e, mesmo assim, eu ainda sentia que éramos um casal atípico.


Quando estávamos nos aproximando do Shopping Ibirapuera, Ricardo pediu para que eu me atentasse:


– Flora deve estar por aqui em algum lugar... – Ele passava os olhos na calçada como se fizesse uma busca minuciosa.


Passei a procurá-la junto com ele, muito embora nunca tivesse visto sua irmã antes. Nesses sete meses eu imaginei "Flora" de várias formas possíveis. A primeira coisa que havia me passado pela mente fora: que tipo de pais colocariam esse nome na filha?! Nada contra, mas eles só poderiam ser hippies... ou algo do tipo. Depois, passei a imaginá-la como hippie. O cabelo longo, um saião indiano colorido com uma pedrinha colada na testa e todas essas coisas. Quando soube que ela estava fazendo um Mestrado em Arquitetura na França, a imagem dela se confundiu mais ainda. Em minha cabeça, tentei criar uma moça hippie com estilo francês, mas foi impossível. No momento em que ele apontou para sua irmã, ela era tudo, menos o que eu havia imaginado. Meus olhos captaram a moça que se aproximava do carro. Ela tinha cabelos escuros que contrastavam com a pele branca, praticamente pálida. Talvez fosse reflexo da temporada europeia, talvez ela realmente odiasse o sol. Em seus olhos, reconheci o mesmo tom de verde que havia nos olhos de Ricardo; mas, diferente da ternura e bondade que o dele transbordava, seu olhar era sério e seco, se é que podemos descrever um olhar desta forma.
Flora entrou no carro sem sorrir, cumprimentou Ricardo que havia lhe saudado e me deu um rápido sorriso, sem delongas ou floreios. Nossos olhos rapidamente se encontraram no espelho retrovisor do carro. E, por mais que eu quisesse continuar encarando-a, não consegui, acabei desviando meus olhos assim que ela sustentou aquele olhar, de uma forma nada simpática.
Segundo meu namorado, ela tinha vinte seis anos – embora eu não fosse capaz de lhe dar nem vinte dois –, era arquiteta e "odiava coxinhas de direita", seja lá o que isso significasse. Seguimos para o barzinho que ficava nas proximidades e toda minha empolgação parecia ter desaparecido. O único que aparentava realmente estar ansioso e não se calava nem por um segundo era Ricardo.


– The Strokes, The Cure e Metallica para finalizar... Fala se não é a playlist perfeita, mana! – Ric falou animado para Flora e pela primeira vez vi surgir um sorriso no rosto da garota. Eu podia dizer com certeza, eles também compartilhavam do mesmo gosto musical.


– Ainda acho que falta Slipknot aí... – Foi a primeira vez que ouvi algo vindo dela maior do que um simples "oi", e, mais uma vez fui surpreendida pela voz suave que Flora tinha. Contrastando com aquela personalidade tão... tão... singular.


Estacionamos em frente ao bar de jazz, que naquele dia em especial abriria seu leque de especialidade musical para os estudantes da escola de música que Ricardo fazia parte. Descemos do carro e ele logo segurou minha mão e sussurrou em meu ouvido.


– Estou muito feliz por compartilhar da minha primeira apresentação com você! – falou carinhosamente.


– Eu também estou muito feliz por estar aqui! – disse com sinceridade, porém algo parecia me deixar mais aérea que antes, algo parecia ter me afastado dele, embora estivéssemos abraçados, lado a lado.


– E aí, as baquetas estão prontas?! – Flora se aproximou, cutucando o irmão com o cotovelo e se direcionando somente a ele.


Revirei os olhos, impaciente com aquela garota.


– Estão no bolso, preparadas! – Ric exclamou com um sorriso maroto.


Ela parecia me ignorar e esquecer por completo que eu estava ali. Enquanto eu só desejava ter um instante que fosse da sua atenção.

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