1| Lágrimas sobre rosas e confissões irreversíveis

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Há uma lufada de ar frio colidindo contra a palidez da minha pele, meu rosto sendo a única parcela receptiva ao vento que embala as minhas bochechas em tons de vermelho quase rosado, tornando-o cada vez mais difícil de encarar a cada passo que dou, ansiando meu destino incerto sob essa escuridão.

A sensação de que pareço caminhar em círculos é agonizante, e, sobretudo, a que tenta me admoestar se o caminho que escolhi me levará ao lugar certo. "Eu gostaria de ter um mapa" é o que penso. A afirmação que faço para esconder que preciso de você agora. Uma forma diferente que encontrei para sofrer menos sua ausência me escondendo sob falsas metáforas que criei; e então encontraríamos o caminho tão fácil quanto fazê-lo de volta para casa - se por falta de escolha - ou não - eu aceitasse vagar madrugadas pelas ruas da cidade, perdida ao seu lado, desejando que o sol não aparecesse para borrar o sonho de uma eternidade que quase aconteceu. - Mas, ao menos me permitiria a chance de devanear sobre sua beleza em contraste com o luar, sorridente com a promessa de que visitaria meus sonhos antes de adormecer.

Minhas mãos procuram algum bolso para se esconder da gelidez, mas tudo o que registram é o vão ao deslizar pelo tecido do vestido florido antigo e agarrar-se à orla para erguê-la ao, subitamente, constatar que rastejam pelo chão em perigo contra a minha bota; seguro-as até o ponto em que minhas mãos insistem para serem aquecidas e então me abraço quando já não posso mais conter a espera dos meus lençóis.

Eu deveria estar aqui, agora? Deveria me permitir resgatar os detalhes de você que se foram de mim?

Sei que no momento sou movida a puro sentimento e adrenalina, mas escolho não abster as verdades contidas em cada parte do meu coração. Você as conhece tão bem quanto eu, e, ao considerar o passado, arrisco dizer que faz isso melhor do que ninguém. Se estivesse aqui entenderia que por baixo de toda essa perseverança, há um medo insistente me acorrentando aos ferros que delimitam até aonde posso correr por você. Mas eu também escolho fazer isso como forma de me preencher, simplesmente porque já não conduzo mais a mim, porque você é o único que pode fazer isso, ainda que esteja alheio a todo esse poder.

Nada que requeira preocupação, nada tão ameaçador que me faça temer, porque você é a verdadeira forma do amor, e tudo o que há em mim só existe para devotar à você.

Lembro-me que costumava funcionar como as lindas notas de um violino, como passos cuidadosos cruzados com tanto zelo como se ameaçassem quebrar a qualquer momento. Como ganchos nos lábios que prendiam-se ao outro, guardando segredos no silêncio tão profundo e acolhedor que transmutavam-se do sentir para algo que os olhos podiam ver - e então o apalpávamos ali, sem pressa com o mundo correndo do lado de fora, sem qualquer outra ambição a não ser ocupar cada canto daquele apartamento com o que nomeamos de Terceto. Mas eu não me permitiria lembrar o sentido disso agora, porque somente a ideia de ter podido viver algo ao tamanho ao seu lado, faz com que eu me arrependa por não ter atendido a parte de mim obstinada a procurar por você.

Eu apenas sei que, assim como tudo o que te compõe, essa estrada que me destina à rua Amélia se tornou uma nuvem perdida em meio à minha memória, dissipando-se aos poucos enquanto reaprendo os detalhes das calçadas, enquanto pareço reconhecer alguns tijolos agora menos alaranjados por consequência do tempo, enquanto minhas retinas são tomadas pelos jogos de cores das casas, embora a presença do escuro não me conceda vê-las no estado real de suas tonalidades. E você não está aqui para que eu reaprenda os seus gostos, ou talvez a forma com que vê o mundo com outros olhos; se ainda prefere chá à café, ou se sua estação favorita continua sendo o outono. Gostaria que soubesse que desde a sua partida, não há um dia em que eu não rogue pela chance de dizer o quanto você fica lindo contrastado a paleta dessa estação que nos presenteia um mar de pigmentos vermelhos, amarelos e castanhos. Elas combinam com os seus olhos, e não há nada no mundo que me cative mais do que a ingenuidade que mora em cada parte significativa deles.

Os meus, embora lutem para permanecer secos agora, ainda choram em demasia, e faz arder as bordas ao passo em que a sensação quente da primeira lágrima transluzente deslizando minha bochecha, também soa como um aviso de paz que dá sentido à sua existência em algum lugar no mundo no qual eu não conheço. E só agora entendo o motivo que me fez caminhar até aqui, e a paz e força que me abraçam para que eu permaneça de pé, frente a esse jardim; o motivo que me faz observar a diversidade das formas e colorações das flores sendo purificadas com o frescor do orvalho, me dando a chance de enxergar o seu nome sendo banhado com as mesmas porções de toques ternos que, ao mesmo tempo, reativam lembranças da nossa juventude.

Sinto como se meu coração fosse perfurado pelos espinhos e ao mesmo tempo libertasse o aroma doce dentro desse adeus que ainda mora aqui. E por essa razão, involuntariamente, me flexiono e me ponho de joelhos em meio a esse jardim, contente pela lembrança; e estendo a mão para resgatar a única flor caída na vastidão da grama macia.

"Rosa branca, Rosa branca. Por que ele não está aqui?"

Seguro-a em meu peito, enquanto a lua é a única testemunha à registrar o momento singelo no qual os meus olhos batizam-na com a sinceridade do meu amor, detalhando em pensamentos cada parte dos seus traços, prometendo jamais esquecê-los, ainda que o tempo me faça esquecer quem eu sou. Meu coração queima e arde, enquanto sussurro bem baixinho a delicadeza do seu nome, para que permeie cada uma dessas pétalas, na esperança de que voem até você e te purifique também. E te levam a certeza - a mesma que tenho - de que ainda há linhas sobre nós a serem escritas por alguém.

Anesthésie, JM Onde histórias criam vida. Descubra agora