Sàngó

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Sàngó

Érica Araújo e Castro

Ele se sentia quente porque todo o seu corpo era quente.

Todo o seu ser era quente e seu coração, sua parte de temperatura mais elevada, era feito de rocha incandescente.

Ele era filho das águas e do caçador de duas cores – não havia como existir tranquilidade em sua natureza. Guerreira era ela, guerreiro era ele. Rainha era ela, Rei era ele. Calma como as águas da tranquilidade, mas também lava que escorre era ela; filho de dois pais era ele.

Quando se juntaram e produziram o principezinho sabiam que não poderia morar nele o sossego da brisa, a calma das águas doces e profundas que corre tranquila e fracamente rolando seixos por seu curso.

Não. Ele seria bravo guerreiro.

Seu primeiro grito ao nascer comprovara aquilo. O príncipe de ébano nascera chutando e berrando causando grande espanto nas parteiras que acompanhavam a Senhora em sua boa hora. O próprio líquido que o cercava, que saía agora de dentro da Rainha, enquanto a mesma expulsava-o do ventre com bravura, estava fervente e fizera duas das rezadeiras que assistiam à nobre Dama saírem correndo de dor.

Uma delas, a mais velha e experiente, e que desejava segurar nas mãos tal rebento divino, suportou a dor silenciosa, com medo de vê-lo cair, já que a Rainha paria de cócoras. Jamais se perdoaria se o real bebê se machucasse antes mesmo de dar seu primeiro suspiro. Enfrentou a água quente, como aquela em que se cozinha o inhame, em suas mãos, que soltaram peles e ficaram em carne viva.

Mas o bebê fora aparado e seus chutes e gritos logo demonstraram a que viera. Seria Rei um dia, profetizou a velha, rezadeira de visão tão longa que, por vezes, alcançava o futuro.

Mesmo que o pequeno não fosse o mais velho.

A Rainha em um suspiro cansado, logo que terminara de expulsar o recém-chegado divino filho de seu ventre, largara seu corpo sobre a palha e estendera os braços para aparar seu pequeno leão enquanto a placenta real encontrava seu caminho natural.

Vira os braços da valente parteira, aquela que aparara a própria Rainha do meio das pernas de sua mãe.

“Querida tia,” – era uma honra ser chamada assim sem o sê-lo – “abençoada sejas pelo Pai de Todos por não deixar o pequeno cair. Que seu pano branco cubra suas feridas causando-lhe alívio.”

Mal a voz cansada, mas ainda assim sonora da Nobre Dama alcançara o ar atravessando o vento e superando magicamente o choro alto do bebê, a velha senhora sentira suas dores aliviando-se como se as próprias palavras da Rainha fossem bálsamo suave e gelado que recobria suas feridas.

O corpo do pequeno fora quente desde o começo. Mais quente que o habitual, demonstrando já que em seu coração a lava dominava a carne batendo brutalmente contra as costelas. Quando ficava em silêncio ouvindo apenas o barulho que este seu órgão vital fazia, o menino já crescido tinha a impressão de ouvir o chiado característico de quando a rocha derretida encontra as águas salgadas do mar produzindo grandes estalos, projeções de magma para o alto e muito vapor.

E ele sorria.

Sorria porque assim começava a conhecer sua própria natureza – o fogo que queima, mas que fecha feridas; o fogo que cozinha os alimentos, mas que queima a mão da cozinheira; o fogo que forja o aço, mas que queima aldeias.

E o pequeno, nem mais tão pequeno entendia que no conhecimento de si mesmo e do âmago do que lhe constitui reside a força do guerreiro.

Saía com seu pai à caça sempre, desde que lhe nascera seu primeiro pelo pubiano. De longe gostava de ver-lhe a cor preta e branca – que muitos apontavam como desonrosa. Ela era sinal de que o primeiro pai de seu pai, impetuoso e guerreiro, havia tomado do segundo pai de seu pai, que criara o primeiro reino da terra, seu espólio de guerra por direito – a linda princesa. Seduzira-a, deitara-se com ela – o que era proibido!

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