Capítulo 1

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Durante o beijo, tudo o que conseguia sentir eram faíscas. Descargas elétricas me consumiam, como se toda a energia do ambiente estivesse concentrada na junção de nossos lábios. Naquele instante, nós não éramos Guilherme e Flávia de corpos trocados, estávamos nos enxergando através disso.

Quando nos afastamos, por alguns segundos - alguns míseros segundos - enxerguei Flávia como ela mesma. Com toda a originalidade de suas roupas, seu olhar intenso e o seu sorriso encantador. Foi nesse momento que algo mudou, uma sensação forte percorria meu peito e tudo que eu pude pensar era nela. Estava totalmente entregue, me perdendo nesses olhos profundos que eu tanto admirava. Até que... pisquei os olhos e me despertei desse encanto.

Flávia estava em meu corpo novamente.

De repente senti medo, um sentimento familiar que tem me assombrado ultimamente, o mesmo que senti antes de ir ao jantar. Flávia estava me dominando lentamente.

Poderia um homem tão apegado ao passado se abrir para um sentimento tão novo e incontrolável?

Há um ano atrás essa pergunta nem faria sentido. Minha vida com Rose me trazia um sentimento de estabilidade, e permanecer nesse estado de controle era a chave para manter minha tão sonhada vida perfeita. Ou será que era somente o que eu acreditava?

Agora que minha vida desmoronou por completo, me entregar a um pouco mais de caos parece assustador. Mas já compreendi que, por mais que tente ajeitar minha vida como era antes, ela nunca será a mesma. Tudo está diferente, sentimentos já não são mais os mesmo, tanto os de minha ex-esposa quanto os meus.

Eu realmente entendo a garota à minha frente. Agora que estou vivendo literalmente sua vida, não a vejo como mais como uma garota perdida e sozinha, e sim como uma mulher que lutou duro a vida toda e que sempre buscou ir atrás dos seus sonhos, mesmo sem a presença de uma mãe e com um pai não muito presente. Me arrependo muito do fato de que, por palavras minhas, ela achou que não tivesse importância na minha vida, mas é o oposto disso, foi ela que acendeu a fagulha que me faltava.

Nos encaramos por mais alguns segundos, e pelas suas expressões de choque, percebi que assim como eu, ela também foi capaz de me ver como eu mesmo.

– Viu? Você voltou, a gente voltou! – Flávia disse com entusiasmo.

– Será que isso foi ação dela?! – Digo sussurrando, me referindo a Morte.

– Talvez ela esteja querendo nos dizer alguma coisa. – Ela olha nos meus olhos.

Não sou idiota, sei sobre o que Flávia estava se referindo. Mas por quê a Morte iria querer nos aproximar se nossos momentos juntos sempre acabam envolvendo criminosos ou riscos de vida?

Ainda embriagado por sua visão, enquanto tento verbalizar meus pensamentos sou interrompido por Odailson, que buzina para que Flávia, em meu corpo, entrasse no carro devido ao surgimento de mais veículos na rua. A dançarina me dá sua despedida clássica, um beijo em minha bochecha. Mas agora, em vez de ter que ficar na ponta dos pés, ela tem que se inclinar para me alcançar. Dou um leve sorriso, nunca irei me acostumar com isso. Observo-a entrar no carro e à medida que se afastam, volto para minha mais nova casa na Tijuca.

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De manhã, acordo com as costas doloridas. Se estivesse em meu eu de 40 anos, não conseguiria dormir nem uma noite nesse sofá. Além da dor, outra coisa me dificultou dormir nesta madrugada, o que senti no encontro com Flávia ontem. Foi naquela noite, olhando o céu noturno através da janela da sala, que tomei uma decisão. Antes de qualquer possível escolha que eu possa tomar, preciso fechar de vez esse ciclo em que tanto tentei permanecer - mesmo que estando no corpo da Flávia dificulte as coisas.

Feche Seus Olhos - Flagui (Shortfic)Onde histórias criam vida. Descubra agora