Capítulo 4

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Passou-se uma semana desde o meu último encontro com Flávia. Ter dito a ela aquelas palavras foi um misto de emoções. Eu estava sendo sincero, mas por quê não me sinto nada aliviado?

Uma sensação horrível se acumulou em mim durante esses últimos dias, Flávia não fala mais comigo como costumava e tem ignorado a maioria de minhas ligações. Sei que o que lhe disse foi doloroso de se escutar, é claro que ela estaria muito magoada... Eu acreditava estar abrindo mão de meus sentimentos confusos - e profundos - para o bem da jovem. Entretanto, agora me sinto apenas um covarde por ter medo de revelá-los. Sou tão egoísta a esse ponto?

Já era de noite e me sentia mais perdido em meus próprios pensamentos do que nunca.

A fim de sair daquela casa, decidi dar uma volta pelas ruas da Tijuca. Após algum tempo de caminhada, passo em frente a Pulp Fiction, lugar onde Flávia estaria trabalhando se estivesse em seu próprio corpo agora. O local estava lotado como sempre, e no meio desse barulho, a memória de um de nossos primeiros encontros na boate me vêm à cabeça.

"Tá se ligando em mim, doutor?"

Me afasto do local rapidamente e continuo andando. Quando me dei por mim estava em frente ao famoso karaokê da região, onde eu e Flávia já nos encontramos algumas vezes.

Mais memórias. Me lembro de quando a abandonei cantando em um dos piores dias da vida dela. - eu era tão obcecado pela Rose assim? - Lembro também de quando a encontrei aqui por acaso com o vestido da Rose. Ela estava linda. E não era por estar usando o vestido de minha ex-esposa, ao contrário do que ela pensa. Não conseguia parar de olhá-la naquela noite, que teve um belo início e um trágico fim. Pena que estraguei tudo novamente ao tentar me explicar.

"Te encontrar aqui foi destino."

"Eu acredito em destino."

Percebo que estou parado na frente do local a um certo tempo e quando me viro, do outro lado da rua escuto um latido. Meus olhos logo se encontram com os do Neném, que estava passeando com sua cadela. Uma raiva inevitável toma conta de mim, mas logo desaparece ao lembrar que aquela era Paula Terrare, vivendo no lugar do jogador. Isso explica as roupas azuis monocromáticas que estava usando.

– Ei, garota! Ah não, é o doutor! – Ela acena. Ugh! ela me viu. Agora terei que ir falar com ela.

– Olá, Paula. Como anda sua vida? Tem cuidado melhor de sua saúde? – pergunto com educação.

– O Neném 'coisa linda' é um show, mas viver a vida dele é um show de horrores para Paula Terrare! – diz ela revirando os olhos, um hábito que já tinha mesmo em seu próprio corpo. – Mas você, doutor, não parece estar nada bem. Vêm, pode contar! Viver como o Neném me fez escutar mais os problemas dos outros. Tem tanta gente naquela casa. – ela reclama.

– Sinceramente, não vejo porquê isso seja de sua conta e eu nunca contaria os meus problemas a uma mulher desmiolada como você! - Não costumo abrir meus sentimentos, e isso não seria diferente com Paula Terrare, a mulher que mentiu que iria morrer em 6 meses para poder se casar com o Neném.

– São problemas com a ex-mulher? – ela me analisa. - Pelo jeito não... Já sei! O doutor está pensando na garota Flávia. – Paula adivinha. – Pode me perguntar qualquer coisa, essa daí é quase como se fosse filha minha. Ela é louca pelo doutor...

– Mas e se ela não for mais?! – a interrompendo. – E se eu tiver dado tantas bolas fora nela que ela decidiu desistir de mim de vez?! – Sem pensar, meu medo escapa de minha boca. Decido então falar tudo a Paula, já não mais me importando em manter a decência.

Conto a ela sobre minhas inseguranças para com este novo sentimento, sobre esse rumo incerto que minha vida tem tomado e como isso me assusta. Que me entregar a Flávia fará minha vida girar em 360°, e me questiono como ficará minha relação com a minha família. Ao fim, me dei conta que estou chorando, descontando neste momento todas as mágoas que foram postergadas devido a grande bagunça que está sendo nossas vidas trocadas. Percebo também que nos deslocamos à pracinha do bairro e que Folgada, a cachorrinha do Neném, estava lambendo o meu rosto. Dou uma leve risada e Paula começa a falar.

– Escute bem, Guilherme... Eu falo como alguém que já fez de tudo nessa vida para ficar com a pessoa que eu amo, e eu falo também como alguém que perdeu os dois grandes amores da minha vida. Um eu perdi para a morte, e outro, perdi pelas consequências de minhas ações. Eu posso ter errado muito nessa vida, mas tem uma coisa da qual eu nunca me arrependerei: não ter tentado o suficiente ou não ter dado chances o suficiente para o amor.

– Quando perdi o Celso meu mundo desabou, achei que era por minha culpa e depois me veio uma onda de arrependimento pelas escolhas que tomei ao longo da vida. Pensei que não teria mais chances e que não seria merecedora de ninguém que pudesse ocupar esse vazio em meu peito. Mas essa dor ficou melhor e aos poucos, o que restou foi apenas aceitação e admiração por aquela pessoa. – Paula diz com carinho. – Não se prive da felicidade por estar preso ao passado. Se construa e se reconstrua, se não der certo, mude; mas se der, você sentirá uma satisfação avassaladora... é assim que eu me sentia com o Neném. – ela sorri com pesar – Enfim, a vida é só uma, mas ao longo dela muitas histórias podem ser formadas. E você, assim como eu, o Neném e Flávia sabemos muito bem disso.

Eu não quero perder esse amor. Amor...

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Após me despedir de Paula, a última pessoa da qual achei que me ajudaria, fiquei acordado a noite toda, olhando o céu sem estrelas da cidade e sentindo a leve brisa noturna ao som de pessoas tagarelando em um bar distante.

Quando voltei a casa dos pais de Flávia, tudo parecia diferente.

Fui ao banheiro e me olhei no reflexo do espelho. Através das belas feições de Flávia, eu fui capaz de me enxergar pela primeira vez. Era como se nesse meio tempo eu estivesse perdido. Um sentimento que só me dei conta estando neste novo corpo, quando não pude mais associar a famosa imagem do Doutor Guilherme ao meu verdadeiro eu.

A partir daquela madrugada, eu finalmente me encontrei, me abri totalmente para quem pudesse ver. Eu me libertei.



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Um pouco dramático esse final né kkkk eu queria que ficasse uma coisa mais poética.

(Vamos considerar que todos aqueles lugares que o Guilherme passou ficam perto um do outro, se não o coitado deve ter andado muito)

Amanhã vai ser o último capítulo...

Feche Seus Olhos - Flagui (Shortfic)Onde histórias criam vida. Descubra agora