Exemplos

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O relógio já virava e gritava seu descontentamento em ser avaliado de tal forma insistente, mas o menino, o filho de uma amiga da minha mãe que o despejara em nossa casa para que olhássemos, nem sequer piscava.
- Brinque com ele, Carolina, para que não sinta a hora passar. - Ela me dissera. Mas ele se desvencilhou de todas as propostas de brincadeira e correu para o banheiro. Depois de alguns sons suspeitos, saiu de lá sem abrir a boca e parou a pressionar o relógio da sala. Quem sabe o banheiro me diga mais do que a respiração entrecortada do menino Joaquim?
Dei passos lentos em direção ao cômodo misterioso e um tanto proibido - minha mãe detesta que eu entre sozinha aqui, só porque brinquei com a água do vaso uma vez quando mais nova. É impressionante como pequenos lampejos de atitude podem nos marcar aos olhos de outros, talvez para uma vida inteira. Então me imaginei adulta indo ao banheiro com supervisão, e abanei a cabeça para espantar os pensamentos.
O cômodo parecia como de costume: um leve cheiro pútrido - como mamãe chamara certa vez -, com um toque de lavanda vindo da essência que fica em cima da pia. E tudo parecia em ordem, só faltava colocar um papel higiênico. Papel... Será que ele mexeu no papel higiênico?
- Carolina! - Me sobressalto com a voz envolta em urgência de minha mãe. O que será que aconteceu agora? Suspiro e vou ao encontro da confusão.
Joaquim vomitou uma imensa gosma branca... o papel higiênico foi encontrado, viva. Mas eu sinto o sermão sendo montado naqueles olhos incandescentes. Provavelmente, algo sobre ter me deixado olhando o menino e ele ter comido o papel... O que vou falar para a mãe dele, ó. E blá, blá, blá.
- Carolina, eu só pedi que você fizesse uma coisa, uma. Olhar o Joaquim enquanto eu faço o almoço. Isso é tão difícil assim? - A tirar pelo fato de que ela não consegue me olhar o suficiente para que eu não deixe o menino comer papel, acho que é bem difícil. Mas é melhor não dizer. Apenas direciono minha boca fechada para o chão e aguardo o rompante acabar. - Eu faço muita coisa, minha filha, preciso da sua ajuda. Joaquim é pequeno, por isso precisa de atenção. E a mãe foi a uma entrevista de emprego. Então, embora eu saiba que não é muito certo te pedir isso e que você precisa do seu tempo para ser criança, eu preciso de sua ajuda em alguns momentos. E esse - Apontou para a lambança de Joaquim. - tipo de coisa não pode acontecer. Posso contar com você?
Minha vez de levantar os olhos e afirmar minha colaboração. Mas eu não queria nada disso. Joaquim é chato. Não quer brincar e me ignora. Eu não deveria ficar presa a mimá-lo, cercá-lo de cuidados. Eu queria meu tempo, minhas brincadeiras, meus trevinhos da sorte... mas o olhar não oscilava. Ela já tinha decidido minha resposta. E eu só precisava repetir a ordem silenciosa. Suspirei e fiz a boa filha:
- Claro, mamãe, sempre.
Ganhei um sorriso pela coragem de me deixar de lado e o foco foi para Joaquim e a limpeza de sua bagunça. Aproveitei a distração para correr para o jardim e respirar ar fresco antes de ser tolida novamente. As nuvens estavam carregadas. Abrigavam milhares de gotas d'água muito mal escondidas e prestes a cair, como o segredo de Joaquim - que engoliu o papel. Como pode ser tão burro? Será que eu já fui assim? De qualquer forma, não importava se já fora ou se me livrara da burrice, pois teria que lidar com ela por um tempo. Pelo menos até a mãe do menino o colocar na creche, ou escola, sei lá.
Inspirei profundamente mais uma vez, guardando aquele ar para usar lentamente e entrei na cozinha, sentindo o almoço fazendo cócegas no meu nariz.
- Então voltou? Que bom. Joaquim está dormindo e preciso que coloque a mesa de almoço enquanto eu tomo um banho. Hoje vamos receber a vovó.
- Oba! - Corri pelas horas até a melhor visita de todas. Quando percebi, os óculos na ponta do nariz e o chapéu acolhedor me abraçavam com um leve cafuné de aprovação.
Minha mãe estava sentada na mesa de jantar e nos juntamos a ela com sorrisos mornos. Então observei as duas figuras conversarem. A mais nova, meu exemplo diário, tinha um ar de entendimento e jovialidade que contrastavam com a calma e profundidade do olhar mais cansado da minha avó. Mas as duas traziam uma personalidade forte que eu tinha vontade de alcançar um dia. Na verdade, me pergunto se a sua força de vontade vem embutida ou se preciso desbloquear essa habilidade. Em todo modo, elas são exemplo mais do que suficiente do que é ser mulher. Enfrentar o mundo, ser tudo o que significa e tudo o que ainda nem foi nomeado. Mas, além disso, nunca desistir. Ser forte para si e para todos, em todos os momentos. Porque, se a vida é feita de exemplos, eles precisam vir de alguém, certo? E as mulheres que elas são... ah, sim, meus maiores exemplos. Eu quero ser como essas figuras tranquilas que conversam na minha frente com a leveza de quem levanta o mundo todo dia como nada mais do que um elemento da rotina.
- E você, minha netinha, o que faria se tivesse que resolver um problemão e só tivesse um pregador de roupas na mão? - Minha avó ria das histórias enroladas de minha mãe. Eu sorri e disse com a confiança espelhada em duas vidas inteiras:
- Eu pensaria no que a senhora e a mamãe fariam. São os meus exemplos mais belos. - Elas pararam a risada em sorrisos ternos e me deram, cada uma, um beijinho na testa. Não sei se ouviam com frequência o quanto são especiais, o quanto são invencíveis, e eu queria deixar isso claro. Abri a boca para falar de novo, mas minha mãe disse:
- Filha, você é como nós. Forte, inteligente e uma menina incrível que se tornará uma mulher maravilhosa. Obrigada por sempre nos trazer tanta alegria. - Minha avó concordou em um aceno de cabeça e sorriu largamente para mim.
- Obrigada, mamãe. Eu sou muito feliz por tê-las em minha vida, e por me aceitarem como sou - Mesmo com todos os segredos. Preferi deixar isso de fora.
- Mas é claro, sempre!
Me pergunto: Se elas souberem todos os segredos que guardo, será que vão me ver da mesma forma? Ou será que é uma besteira minha pensar nisso? Já ouvi umas pessoas duvidosas - como mamãe os chamou - dizendo que a vida é feita de segredos insignificantes que sustentam o bem estar de coisas boas e claras. Mas será que manter segredos é tão necessário assim para ter paz e tranquilidade?
Ou uma boa vida pode ser inteiramente clara, impiedosamente sincera? Paz ou verdade absoluta? Clareza ou omissão?
Não sei, mas acho que vou me conter nas sombras calmas dos pequenos segredos humanitários - que buscam um bem maior.

ENTRE CONTOS E SEGREDOSOnde histórias criam vida. Descubra agora