Conveniências

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Hugo terminou a sua prece diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima e fez o sinal da cruz. Mais uma noite em que o seu sono foi invadido por imagens e cenas de um passado sombrio. Não importava quanto tempo havia passado, como alguém poderia se acostumar com pesadelos tão reais?

Pousou o terço com cuidado sobre um lenço cor de rosa adornado com um bordado cheio de falhas, mas que para ele tinha grande valor sentimental. Aquele foi o primeiro presente que ganhou desde a morte do pai. O segundo, na verdade, pois seu terceuro em comando, Aquiles fez uma arte especialmente para ele, porém, alguém especial o havia alertado que um punhal dificilmente poderia ser considerado um bom presente...

"Esse é um bom presente, vê? Eu mesma bordei, e a cor combina comigo, para que seja para você uma lembrança de mim quando eu não estiver por perto!"

Ela não fazia ideia do quão comovido ele ficou quando revelou que bordou o lenço. Alguém perder tempo para fazer algo para ele, com tanto carinho e sem esperar nada em troca...

Passou o dedo suavemente sobre o bordado, como se temesse danificá-lo, antes de dobrá-lo em volta do terço e devolvê-lo à caixinha de madeira que ficava ao lado da imagem da sua santa de devoção.

Depois de anos, acorrentado num porão, não se sentia mais humano. Ele era apenas a "fera", um animal liberto em noites especiais para rinhas humanas, ou para eliminar um inimigo do monstro...

"Eles vão pagar, todos eles, um por um!" Esse era seu mantra todas as manhãs, era o que o mantinha de pé nas suas noites escuras, antes de ser resgatado.

Foi para o banheiro da sua suíte tomar uma chuveirada matinal. Fria, gostava da dormência que a água fria causava no seu corpo pelas manhãs, embora naquele dia a água não estivesse tão fria, já que a primavera havia chegado. Após o banho, parou diante da pia do banheiro para aparar a barba e o bigode, que mantinha bem curtos. Usar a pele escanhoada era algo impensável, pois carregava no rosto a marca da violência sofrida no passado, parte escondida pela tatuagem no lado esquerdo do rosto: o ferrão ao lado da sobrancelha e a figura de escorpião, artisticamente criada e confeccionada por Aquiles, se expandia até a boca, as garras escondidas pela barba. Era como usar uma máscara que o permitia seguir como uma nova pessoa e se olhar no espelho sem odiar a si mesmo. A tinta da tatuagem escondia uma grosseira e repelente cicatriz...

Após completar a sua rotina matinal, voltou para o quarto para se vestir, apenas com uma toalha em volta da cintura. A primeira coisa que viu foi uma calça de linho azul-marinho esticada sobre a cama e sapatos pretos bem engraxados no chão. Estalou a língua contrariado e buscou com os olhos a pessoa responsável por aquilo. O roupeiro estava com as duas portas abertas e Juanita, distraída, arrastava os cabides de um lado para o outro, indecisa sobre qual camisa escolher para ele.

Ela era afilhada da governanta da mansão, e tinha servido como válvula de escape na cama há alguns anos.

— O que está fazendo aqui, Juanita? — Perguntou contrariado.

Ela deu um gritinho assustada e virou-se com as mãos no peito. Forçou um sorriso e ajeitou o vestido leve de algodão, que deixava suas belas e torneadas pernas á mostra.

— Nossa, Hugo, você me assustou!

— O que disse?

O tom de voz dele era baixo e sombrio, os olhos cintilavam. Ela arregalou os olhos ao se dar conta de que tinha cometido um deslize. A intimidade que tinham era puramente sexual e Hugo exigia respeito de todos debaixo de "suas asas"

— Desculpa, senhor Hugo, quer dizer, mestre. Me perdoa, mestre!

— Pelo que exatamente quer que eu te perdoe, Juanita?

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