Capítulo 4

41 12 8
                                    


"Conhecer não é demonstrar nem explicar, é aceder à visão." ( Antoine de Saint - Exupéry – O Pequeno Príncipe).

2 dias antes

Ana

Joguei a água fervendo no velho coador e o aroma parecia me inebriar. Eu amo café.

Armazenei o melhor líquido do mundo na garrafa térmica e subi devagar o pequeno lance de três degraus da escada. No corredor, escutei o chuveiro sendo desligado. Em breve Felipe estaria pronto, então abri a outra porta e quase ri com a visão de William com a bunda para cima.

Como sempre, sua coberta estava no chão. Todos os dias era a mesma coisa. Em algum momento da madrugada ele chutava as cobertas e ficava de bruços.

Eu me aproximei, afaguei seus cabelos loiros, outra característica que já foi motivo de falatório, e depositei um beijo em sua têmpora.

— Will – chamei.

— Só mais cinco minutos, mãe – pediu com voz grogue pelo sono.

— Nada disso! Você tem trabalho para apresentar hoje na aula.

Ele sentou-se num ímpeto, me fazendo rir.

Ele tateou a mesinha de cabeceira e pegou seus óculos, o que só ampliava a linda visão de seus olhos verdes com borda preta.

— Hoje é o dia do dinossauro? – empolgou-se e assenti. — Eu serei o mais forte e mais temido! – informou dobrando o braço e me mostrando seus músculos inexistentes.

Do nada, ele fez a imitação de um rugido, que imaginei ser de um dinossauro.

— Hum... Dinossauro ou não, você precisa escovar os dentes – brinquei, tampando o nariz.

Ele pulou da cama e começou a tossir. Já era o terceiro dia na semana e eu sabia que haveria mais uma discussão inevitável com Felipe.

— Bom dia, Lipe – falei, já na cozinha e ele me beijou.

— Bom dia, amor.

Outra coisa, das muitas estranhas em nossa vida, eram os termos. Felipe sempre me cobrou mais carinho. Eu nunca o chamei de amor. Parecia algo tão falso, que todos dizem no automatismo.

— William voltou a tossir – comentei, sentando-me e tomando meu café.

— Já discutimos isso. Deve ser uma gripe qualquer ou virose.

— Pouco me importa. Doutor Lucas está em São Paulo. Eu te disse que se William não melhorasse eu iria atrás de seu pediatra, seja onde estiver – sentenciei perdendo um pouco o apetite.

Felipe era um ótimo marido. Simpático, atencioso, amoroso até demais, mas tinha seus defeitos. Ele odiava gente, o que era irônico por trabalhar como assistente de dentista. Morávamos bem depois da cidade interiorana paulista, quase zona rural, justamente porque ele não gosta de pessoas bisbilhotando.

Suas paranoias, porém, estavam afetando nosso filho e eu jamais deixaria Will pegar uma doença mais séria.

— Se Will amanhecer ainda tossindo, iremos amanhã mesmo para São Paulo. Caso não queira nos levar, pegaremos um ônibus.

— Ana... – falou em tom de repreenda.

— Não foi uma pergunta, Felipe!

William entrou na cozinha com o uniforme da escola, porém, na cabeça uma máscara de dinossauro.

Eu (não) me lembro [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora