Irmãzinha

13 3 0
                                    

Inspira. Expira.

Naomi andava em círculos, repetia a si mesma que não deveria causar problemas, que precisava ser exemplar. Entretanto, essas eram as estúpidas palavras de seu pai e ela poderia repeti-las quantas vezes fosse necessário: nada iria mudar.

Inspira. Expira.

Um manto escuro cobria o céu, o ar da primavera dançava ao seu redor. Grama úmida, o canto das cigarras. A luz artificial cortava a escuridão, mas a claridade evitava a garota, permitindo que as sombras lhe engolissem e, oculta, ela sentiu o peito arder. O peso nos ombros era  insuportável e um nó na garganta lhe roubou o ar. Naomi fechou os olhos, pensou em como contaria o que havia acontecido ao irmão. Suspirou. Abriu os olhos, enxergou o negro estrelado do céu.

Inspira. Expira.

Ser exemplar, ser exemplar. O que mais ela precisava fazer?

Seguir as regras, ser a melhor aluna da turma, estar em primeiro lugar nas competições. Obediência. Naomi repetia isso como um mantra, mas estava no limite, falhando e falhando sem parar. Algo minúsculo dentro de si lhe dizia que as coisas voltariam a dar certo, mas algo ainda mais forte tinha certeza de que tudo só iria piorar. E essa coisa parecia certa, ao passo que Naomi nem mesmo conseguira manter a promessa feita ao irmão.

A cada novo dia uma nova batalha e ela exausta.

A garota checou as horas no celular, abrindo-o e fechando-o em intervalos cada vez mais curtos. Seus olhos seguiram até a bicicleta no poste. Pensou em voltar, tinha certeza de que o peito iria explodir. Andou em círculos. A escuridão lhe espremia, o coração pulsava nas orelhas. Devagar, ela contou alguns números, tentando acompanhá-los com a respiração. Sentiu o fresco aroma noturno, o adocicado da grama úmida. Escutou uma cigarra, o barulho dos tênis no assoalho, abafado pelas paredes do ginásio.

Checou o horário de novo. Contou os segundos. Respirou. Checou o horário mais uma vez. Os dedos se embolaram. Respirou. Horário. Coçou a nuca. A porta se abriu.

Um feixe de luz espantou a escuridão, as cigarras perderam o palco para vozes altas demais, alegres demais. Naomi escaneou o grupo barulhento, avistou o irmão em meio a bagunça e percebeu que ainda estava mergulhada nas sombras. Dois passos, permitiu-se ser iluminada pela luz pálida. Os olhos reclamaram da claridade súbita, mas ela esperou, brincando com as mechas soltas de sua trança enquanto a outra mão apertava o guidão da bicicleta.

Ela não se mexeu, não ergueu um braço, não moveu um músculo, mas Daichi a avistou mesmo assim. Ela engoliu seco e deu meia volta. A cabeça baixa, a franja lançando uma sombra em seu rosto. Daichi se despediu apressado e correu.

— Naomi, não apareça assim do nada e fuja!

O tom do irmão era firme, mas doce e a garota parou, subiu no assento, esperou pelo irmão. Ela ainda encarava o concreto, o coração prestes a abrir caminho através do peito. Inspirou fundo, soltou o ar devagar. Ergueu a cabeça e percebeu a escuridão deformada pelas luzes artificiais, os traços fantasmagóricos do colégio como sombras noturnas.

A semelhança entre Daichi e Naomi não era grande, ambos compartilhavam apenas os mesmos cabelos de tom terroso e o porte atlético que ela tanto detestava. Embora o garoto lembrasse mais a mãe, foi Naomi quem herdou seus olhos cor de oliva, grandes e polidos como bolas de gude. Todo o resto Naomi puxou do pai:  as sobrancelhas febris, a palidez, os lábios ferozes e as bochechas redondas como maçãs.

Daichi alcançou a irmã e recebeu um cumprimento silencioso porque ela era incapaz de sustentar aquela combinação de olhar gentil e sorriso tenro. Prosseguiram sem pressa. As cigarras tomaram a noite mais uma vez, uma sinfonia conjunta, embora pouco harmoniosa. As mãos de Naomi tremiam e as palavras queriam sair, mas não encontravam caminho.

Monstros e MortaisOnde histórias criam vida. Descubra agora