Xie Lian estava acostumado a dor.
Mesmo assim, o frio constante do caixão o deixou ansioso.
Seu coração perfurado sangrava e sangrava, não se sabia quantas vezes ele já tinha morrido, seja de fome, falta de ar ou perda de sangue.
Os primeiros anos foram um inferno, anos sem experimentar sol ou sentir a brisa trazendo consigo o fraco aroma floral.
O caixão estava totalmente arranhado, afinal, era a única coisa que Xie Lian podia fazer para enfrentar os pesadelos e alucinações.
Não havia quem o esquentasse do frio.
Não havia quem o aliviasse do medo.
Não havia quem o tirasse do inferno.
Não havia nada ou ninguém se não a fita de seda branca que ocasionalmente procurava inutilmente uma saída e um ex sacerdote com máscara prateada que há muito havia desistido.Depois de meio século, o frio do caixão se tornou normal na pele de Xie Lian, seus membros dormentes não faziam movimento algum a muitos anos, seu cabelo estava incrivelmente longo e emaranhado depois de anos sem nenhum cuidado, ele parecia miserável, mas ele, o homem que uma vez tinha sido aclamado e amado, era realmente miserável na penumbra à sete palmos do chão.
Xie Lian sentia fome, sentia sede, sentia frio, entretanto, ainda era incapaz de sentir a dor, não importava o quanto de sangue saia de seu peito, o quanto o vermelho carmesim manchava suas vestes, não doía, não doía tanto quanto encontrar o cadáveres dos seus pais, ou ter sido esfaqueado centenas de vezes, ou tentar suicídio, cada centímetro do seu corpo estava indolor, quase em paz.
Quando se passaram sessenta anos, ele apenas se perguntou se faria diferente se tivesse a oportunidade, se mudaria algo, se tentaria de novo, pensar no passado abria uma ferida, uma ferida profunda e sangrenta, mesmo assim, essas memórias causaram conforto indescritível no escuro do caixão.
Certa vez ele se lembrou de como insistiu em dormir com seus pais, ele se sentiu mimado.
Certa vez ele se lembrou de passear em vastos campos floridos com seus amigos, ele se sentiu amado.
Certa vez ele se lembrou da criança que ele salvou, da criança que vivia por ele, da criança que provavelmente morreu a muitos anos, ele se sentiu absurdamente patético.
Ceta vez ele se lembrou de afastar Feng Xin, ele se sentiu ridículo.
Certa vez ele se lembrou de seu eu ignorante, rude, daquele eu que quase seguiu Bai Wuxiang, daquele eu que matou Wu Ming, daquele eu que quase dizimou Yong'An, Xie Lian desejou que seu coração parasse de pulsar e que seu corpo finalmente morresse, que sua alma imortal, incapaz de reencarnar, fosse esquecida no vasto mundo no qual ele sonhou em conhecer uma vez.
No setuagésimo século ele descansou, ele parou de pensar, parou de se importar, ele apenas dormiu, dia e noite ele dormiu, ele não sabia discernir os horários, não sabia quando o sol se punha ou nascia, não sabia quando a lua iluminava o céu noturno.
Ele era um homem meio morto, meio consciente, sem vontade de viver, apenas esperando o dia que ele seria livre daquele lugar amaldiçoado.
A madeira que perfurava seu peito havia finalmente apodrecido por completo dentro de seu corpo, deixando apenas farpas em seu peito e coração, as quais logo sumiriam também, o caixão entretanto ainda se mantinha em bom estado se não as marcas dos arranhões de Xie Lian de muitos anos atrás e sangue seco que um dia fluiu por sua superfície.
No octogésimo século, ele se agarrou a Ruoye e novamente tentou sair do caixão, oitenta anos preso a baixo de sete palmos da superfície, não havia alguém que se atrevesse a tocar perto de seu túmulo, nem mesmo para prestar respeito, não para o assassino do imperador, o traidor de Yong'An.
O teto do caixão mais uma vez foi manchado de carmesim e mais arranhões, a pouca energia espiritual de Xie Lian fez apenas alguns buracos na madeira.
No nonagésimo ano, ele concentrou toda sua energia espiritual na palma da sua mão, tudo que ele podia aguentar, até que sua palma fosse apenas carne exposta, até que seu braço já dormente ficasse ainda mais dormente.
Assim, no centésimo ano, Xie Lian conseguiu um buraco que ia até o solo, um buraco pequeno que deixava a fraca luz do sol entrar, Xie Lian se sentiu muito feliz.
Naquele momento, ele não sabia se ria ou chorava.
Ruoye foi quem passou pelo buraco e escavou a terra, Xie Lian quebrou a madeira do caixão com suas mãos nuas, ignorando as farpas, uma quantidade de terra enorme caiu sobre sua cabeça e a primeira coisa que ele engoliu depois de um século foi terra molhada.
Xie Lian finalmente saiu do caixão.
Nessa hora, ainda era o por do sol, o céu estava manchado de laranja e roxo, Xie Lian tinha se esquecido o quão simples e bonito o mundo era, ele se lembrou de como nunca apreciou o por do sol, nesse dia, ele passou a ser grato por cada coisa ao seu redor.
Ele perdeu seus pais,
Mas ganhou Ruoye.Ele perdeu seus amigos,
Mas ele tinha a si mesmo.Ele foi esfaqueado cem vezes por aqueles que ele sempre quis salvar,
Mas ele salvou aqueles no templo.Ele foi preso em baixo da terra por cem anos,
Mas agora ele aprendeu a valorizar a simplicidade das coisas.Olhando para o horizonte, sujo de terra e sangue seco, ele apreciou o que à tanto não via, mesmo com os olhos ardendo sobre a luz, ele olhou tudo ao seu redor.
As pequenas casas.
As flores.
As nuvens.
O sol.
As árvores.
A brisa fresca.
Seu pulmão finalmente se encheu de ar, ar fresco e gelado.
Seu corpo não estava mais tão frio.
Ele não se sentiu mais tão solitário.
O mundo tinha se tornado um lugar muito agradável nesses anos que ele estava cego para a visão estupenda que os humanos, deuses e fantasmas haviam forjado.
Xie Lian não sabia se ria ou chorava.
Então, ele fez os dois.
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Cego por cem anos
FanficCem anos preso dentro do caixão, cem anos sem ver o mundo, cem anos cego pela escuridão à sete palmos do chão. Reflexões de como Xie Lian passou os cem anos no caixão. Tem spoiler pra quem não terminou de ler, alguns gatilhos (a gente tá falando de...