Caminhava seguindo os passos dela. Sem aparente destino certo. E eu não estava me importando nem um pouco. O fio da minha vida ia saindo dos trilhos, se desprendendo da sua harmonia perfeita.
- Você sempre segue estranhos assim na rua? - Seus olhos, cobertos ainda pelo lenço, percorriam cada parte de mim, fazendo eu me sentir um pouco despido. Despido não só de roupas, mas de pretensões. Convenções e expectativas.
Senti meu rosto esquentar, torcendo pra que a mulher do meu lado não notasse. Optei pela sinceridade:
- Não, sabe que é a primeira vez?
Esbocei um sorriso genuíno, acompanhado de uma risada. Ela parou um pouco de andar, me olhando sem piscar por alguns segundos, que pareceram uma eternidade. Em seguida, balançou um pouco a cabeça, como que voltando à realidade. Sua expressão retornando ao jeito descontraído e divertido.
- Sua mãe não ensinou que é perigoso?
Colocando as mãos nos bolsos, caminhei mais devagar ainda, desacelerando até encostar em um poste do lado da calçada. A garota, um pouco mais a frente, olhou pra trás onde eu tinha parado. Refez os passos até mim, pulando uma espécie de amarelinha invisível no paralelepípedo. Dando um salto final na minha frente.
- Um estranho pode vir um dia e te sequestrar. - ela murmurou, de modo quase inaudível.
- E se eu quiser? - devolvi impensadamente.
A tensão foi cortada pelo corpo dela de repente indo de encontro ao meu. Segurei os ombros dela, impedindo que se desequilibrasse. Um homem, que acabava de estacionar um Ford 1929, acabara de passar, não se importando se esbarrasse em alguém. Muito bem vestido. Certamente era do tipo que achava que todos deveriam sair do seu caminho.
- Que sem-vergonhice. - murmurou entre dentes.
A vi juntando toda a sua respiração, como se ela estivesse se preparando pra correr uma maratona. Ela soltou o ar levemente.
- Idiota, não sabe olhar por onde não! - ela esbravejou, gesticulando na direção do indivíduo.
Olhei fascinado o pequeno furacão na minha frente.
- Uma mulher de família não deveria ficar papeando no meio da rua dessa maneira. - respondeu o homem, em tom de desprezo, a olhando de cima a baixo, começando pelo seu rosto caracterizado para o Carnaval.
Senti meu sangue ferver ao presenciar isso. Dei um passo pra frente, dedo em riste.
- Retire o que disse agora!
O homem pareceu se assustar. Começando a se afastar de costas, quase tropeçando. Até sumir de vista, entre os pedestres.
Ela bateu palmas, com cara de aprovação.
- Muito bem!
- Acho que essa foi minha primeira briga de rua. - Declarei, meio ofegante. Sentia uma leve sensação de adrenalina.
Ela começou a rir. Tanto que seu corpo se dobrou ao meio, apoiando as duas mãos nos cotovelos.
- Você viu a cara dele?!
- Um completo canalha. - Tentei reunir um pouco da raiva, tentando permanecer com a cabeça acima da água. O encantamento era como o oceano, me puxando cada vez mais para a direção de uma situação inevitável.
Ela ficava deslumbrante rindo. Os pequenos dentes brancos à mostra. As bochechas coradas. O brilho no olhar.
- Tem gente realmente que não merece o que tem.- Ela falou, ficando mais séria. Com ar pensativo, observava um ponto distante.
Me virei, procurando saber o que captara o interesse da garota.
O carro do sujeito que tinha passado pela gente estava estacionado, com metade dele na calçada.
Subitamente, como se uma lâmpada se acendesse, ela deu passos determinados em direção ao veículo. Retirando um grampo do cabelo, começou a trabalhar na tranca da porta.
Imediatamente, fiquei alarmado.
- O que você tá fazendo? - O pânico transparecia na minha voz.
- O que tá parecendo?
Olhei para os lados. Transeuntes indo e vindo calmamente, ignorantes do fato que uma garota mascarada, com um coração azul pintado na bochecha, estava roubando um carro em plena luz do dia.
O som da porta destrancando soou. Quase como se fosse o prenúncio de coisas novas.
Ela já se encontrava perfeitamente instalada no banco do motorista. Colocou o pé no acelerador, avançando um pouco.
Apoiando o braço em cima da janela aberta, virou o corpo totalmente na minha direção, para o lado de fora do carro.
- Aposto que não tem coragem. - Ela provocou, em tom desafiador.
- Não se trata de cora... - parei no meio da frase.
Por um instante imaginei. Essa garota sumindo da minha frente, cantando pneu. Deixando pra trás uma nuvem de poeira, a única pista que ela já esteve aqui. Ninguém além de mim se lembraria da presença dela nessa cidade. E se tornaria nada além de uma lembrança. Que talvez eu contasse para os meus netos daqui a algumas décadas.
Um relâmpago soou, não muito distante. Como se os próprios elementos estivessem me impulsionando a tomar uma decisão.
A buzina pressionada por ela, cortou minha linha de pensamento, me dando o empurrão final.
- Só se vive uma vez, não é mesmo. - Joguei pra ela.
Dei a volta no carro, entrando em algo que não era meu. Ela olhou pra mim durante alguns segundos, sorrindo, e se inclinou, depositando seus lábios na minha bochecha. Passei os dedos pelo local, enquanto ela dava a partida. Cantando pneu, igual na minha imaginação. Só que dessa vez eu estava com ela.
- Posso saber seu nome agora? Ou ver seu rosto? Eu não sei nada sobre você.
- Flávia.
Sussurrei o nome baixinho para mim mesmo, assimilando cada sílaba, testando como cada letra saia na língua...
Numa resposta muda, ela desatou o nó do lenço com uma mão só, a outra se mantendo firme no volante. Com a mesma mão, jogou o lenço pela janela do lado dela, que tomou rumo próprio, e se perdeu com as correntes do vento.
Memorizei logo os detalhes das partes recém descobertas do rosto de Flávia. Como uma jóia preciosa, muito procurada.
- Me fala, aonde você quer ir.
- Pra onde você quiser, tá bom pra mim.- Respondi, despreocupado.
Sem documentos, sem bagagem, sem família ou endereço fixo. Somente a roupa do corpo, um destino incerto e Flávia ao meu lado. Isso, ao invés de me deixar nervoso, me acalmou. Tinha tudo que precisava ali mesmo.
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Beautiful Crime (FLAGUI 30's AU)
RomanceOs caminhos de uma ladra profissional e um homem entediado com a vida se cruzam, pra nunca mais se separarem.