Pra ninguém ficar confuso, texto em Itálico: Guilherme | texto em negrito: letra de música
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5 ANOS ANTES
Nunca tinha visto alguém que parecesse tão visivelmente entediado. Ou talvez não tão visivelmente assim. Talvez somente eu que consegui enxergar a sua essência imediatamente. Cansado da sua vidinha certinha. A mesma sequência de ações todos os dias.
Eu chegara na sua cidade, por mais estranho que parecesse, por puro instinto. Eu sempre tinha um plano. Meus golpes estavam se aperfeiçoando, afinal, já havia saído de casa a alguns anos. Tinha 17 anos quando decidi que não aguentava mais as regras impostas por uma madrasta extremamente carola.
Como falei anteriormente, foi instintivamente que acabei no caminho dele. Chame de destino, o que quiser.
Consegui arrancar alguma informação da jovem moça, chamada Olivia, que cuidava da limpeza do hotel de quinta em que me encontrava. A via sempre à porta, esperando ele passar, fato que se repetia quase todos os dias. A criatura se desmanchava em suspiros sempre. Soube que era filho de um importante advogado local, e que todo mundo sabia que sua mãe comandava a sua casa com mãos de ferro.
Sua postura exemplar, a pontualidade dos seus hábitos. Cabelo? Perfeitamente alinhado. Gravata? Impecável, nunca fora de lugar. Tudo em relação ao Guilherme despertava em mim uma vontade de bagunçá-lo. Pra que de algum jeito ele combinasse com a minha própria bagunça.
Agora, a questão era como me aproximar dele. Apesar de toda a minha ousadia, alguma parte de mim sabia que aquele seria o momento mais importante da minha vida, então é óbvio que estava com receio de estragar tudo. Eu queria fazer com que ele olhasse pra mim e nunca mais conseguisse me tirar do seu sistema, como uma taça de vinho derramada sobre um tecido fino. Você talvez consiga tirar a mancha, mas o cheiro continuará para sempre impregnado.
"Taí, eu fiz tudo p'rá você gostar de mim Oh! meu bem, não faz assim comigo não! Você tem, você tem que me dar seu coração!"
Abençoado Carnaval, que me acordou enquanto me recuperava da noite anterior quase toda acordada. (Quem disse que viver desonestamente é fácil?) A noite passada inteira procurando me familiarizar com os hábitos e jogadores de um recinto de jogos de azar.
A melodia contagiante me injetou nova energia. Disparei da cama. Minha cabeça estava lá fora, então meus membros seguiam automaticamente. Me foquei no que estava fazendo pela primeira vez, e percebi que faltava algo. Peguei delineador azul e desenhei um coração na lateral da minha bochecha para finalizar minha aparência. Combinando com o simples lenço, também azul, que agora se acomodava em volta da minha cabeça, como uma máscara.
A mistura de cores, fantasias e pessoas, me pegou de assalto assim que pus o pé na calçada de paralelepípedos. O ritmo da música e meu coração batendo como um só. A combinação da grande quantidade de pessoas se movimentando perto umas das outras, e o sol já indo alto no céu, começava a fazer minhas roupas grudarem no corpo, meu cabelo seguindo o mesmo comportamento.
Me despi de qualquer fingimento. E me permiti ser quem eu realmente era. Uma mulher que amava a vida.
Tentava seguir meu caminho em direção ao hospital. Procurando não deixar que a massa de pessoas em festa atrasasse o meu passo. Repassava as obrigações do dia em minha cabeça mecanicamente.
Me permiti divagar um pouco. Regina sempre eficiente como era, a secretária perfeita. Eu poderia até tentar adivinhar a roupa que ela estaria usando hoje, e teria uma alta probabilidade de acertar.
Por mais que minha mãe tenha feito certa pressão, eu amava a medicina genuinamente. Mas parecia que quanto mais os dias se seguiam, mas eu sentia me oprimir a ordem dos dias. Tinha um grito alojado na minha garganta, qualquer coisa pra desestruturar o "Bom dia, mãe." "Bom dia, meu filho." "Bom dia, Doutor Guilherme" "Bom dia, Regina." Ou também "Meu filho, não acha que já está na hora de dar uma continuidade a linhagem dos Monteiro Bragança? Falando nisso, tenho algumas candidatas em mente."
"Sobre mim teu olhar, Vem um dia pousar, Ainda aumentas a minha dor, Com cruel desdém."
"Teu amor, Tu por fim me darás, E o grande fervor, Com que te amo, verás."
A voz que cantava docemente, entrou pelos meus ouvidos sem pedir permissão. Me embaralhando por completo. Qualquer pensamento coerente desaparecendo da minha cabeça. Senti meu corpo paralisar, como um boneco de marionete, controlado por estranha força.
Pus todas as minhas emoções reprimidas por anos, naquela música. Fechei meus olhos para temporariamente me sentir sozinha. Não me importei se me achariam maluca. Uma garota de olhos fechados, cantando sozinha, balançando seu corpo no ritmo da música que ela própria criava.
Procurei com os olhos pela fonte da voz. Como se minha vida dependesse disso. E de certo modo parecia que dependia. Ela acabara de fechar as pálpebras, seu rosto parcialmente escondido por um lenço que lhe servia de máscara. Seu cabelo solto, grudava nos lados. A pintura da bochecha escorria levemente. Tão perfeita em seu caos. Parei a alguns metros de distância dela. Não me pergunte como cheguei ali, eu certamente não saberia responder.
"Sim, Teu escravo serei, A teus pés cairei, Ao te ver minha enfim."
"E unidos enfim, Teremos depois, Só venturas sem fim."
Pronunciei as últimas palavras da música bem baixinho. Deixando as letras e a melodia vibrarem no ar em volta de mim. Abri minhas pálpebras lentamente. Dois olhos, de uma altura muito maior do que a minha, me olhavam fixamente. Sem piscar. Era ele.
Era ela. Nunca a tinha visto na minha vida. Mas sabia que a seguiria aonde ela quisesse que eu fosse...
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A música de Carnaval que entra pela janela do quarto da Flávia é : 'Pra Você Gostar de Mim', da Carmen Miranda.
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A música que a Flávia canta é 'Linda Flor'.
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Beautiful Crime (FLAGUI 30's AU)
Roman d'amourOs caminhos de uma ladra profissional e um homem entediado com a vida se cruzam, pra nunca mais se separarem.