Capítulo 2 (Amostra)

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No dia seguinte, o despertador tocou e Davi se sentiu mais confiante ao chegar na escola. Afinal, tinha encontrado um assunto minimamente em comum com a menina mais popular da sala e pela primeira não se sentiu invisível. Como chegou em cima do horário, não conseguiu dar oi pra sua nova amiga e a professora da primeira aula logo emendou na chamada dos alunos.

— Analu?

— Presente!

— Bruno?

— Aqui! — A resposta veio de um menino no fundo da sala.

— Carolina?

— Eu! — Era outra menina, próxima à Analu.

— Davi?

— Pres...

— HEY, BRITNEY! — Interrompeu uma voz desconhecida.

— TOXIC! — Uma voz ria debochada.

— OOPS, ele fez de novo! — Outra menina.

— É O COVER OFICIAL — Finalizou a quinta integrante do grupo.

A situação que já estava ruim, não parou por aí, porque ao fundo da sala Davi ouviu um dos meninos resmungando:

— Xiiiii, gosta de Britney? Então já sabemos o que ele é!

Se a cena estivesse sendo filmada, certamente Davi venderia o DVD anos mais tarde para alguma produtora, porque realmente pareceu com um episódio daquelas séries de drama adolescente, mas não foi o caso. O garoto ficou roxo, azul, verde, cor de rosa em um misto de confusão, vergonha e raiva.

Algumas carteiras para trás, Analu arregalou os olhos surpresa ao ver a reação das amigas. Descontroladas, elas riram alto — só pararam ao sentir seu olhar fuzilante por ter sido traída. Como assim elas debocharam logo com a única coisa que ela havia contado sobre o garoto novo? Para Analu, não era legal zoar alguém, mas menos legal ainda era o que estava acontecendo ali, pois a sua reputação corria um risco gravíssimo! Isso porque quando se está na sétima série só tem três coisas que podem ruir a imagem de uma pessoa: ser BV, esquecer de passar desodorante e SER FALSA. Pra essas jovens, ser considerada falsa era pior do que ser considerada uma criminosa. Na verdade, ser falsa era o pior dos crimes, e Analu não queria carregar esse fardo.

— Silêncio aí, se comportem, pelo amor de Deus! Continuando... Erick — A professora esbravejou antes de continuar a chamada, enquanto Davi se afundava na cadeira, mesmo sendo impossível esconder os seus 1,80m de altura, e Analu pensava num plano para reconquistar a confiança do garoto.

(...)

Naquele dia, Davi fez de tudo para ficar ainda mais solitário. Trocou uma área mais isolada do pátio pela biblioteca — já que ninguém poderia ficar rindo e falando alto por lá. No final de todas as aulas, ele saiu voando e foi direto pra casa, onde estaria sozinho pelas próximas horas para processar o que havia acontecido.

O que mais intrigou Davi não foi nem a zoeira em si ou o fato dos demais saberem que ele era fã de Britney Spears. O que estava em jogo era a imagem que as pessoas poderiam ter dele, porque todos os outros meninos da escola gostavam dos mesmos assuntos — tudo o que girasse em torno dos diversos campeonatos de futebol e da banda de rock santista Charlie Brown Jr. — e gostar de Britney Spears estava fora do espectro de "coisas consideradas normais" para ser um menino. Saber as letras das músicas e coreografias tornava tudo mais acentuado. Gostar de Britney era visto como coisa de menina, assim como ler a Capricho, usar gloss e vestir calça jeans de cintura baixa. Sua preocupação era que essa informação não saísse da escola. Havia uma imagem social a ser mantida e uma das piores coisas que poderia acontecer era não ser considerado "homem o suficiente". Ou pior, ser considerado uma "bicha", palavra que Davi só conhecia como xingamento usado por praticamente todos os homens ao seu redor, principalmente na sua grande família cheia de machões.

Gostar de Britney e outros representantes da cena pop já havia sido motivo de muita chacota por outras pessoas, principalmente de seus vizinhos e conhecidos, que viviam o chamando de "bicha, viadinho e boiola". Esses mesmos homens eram os que faziam questão de coçar o saco em público e cuspir no chão —, coisas que Davi via como falta de educação — porque, aparentemente, essas eram consideradas coisas que só "homem de verdade" faz.

Davi não entendia ao certo o que aquelas palavras significavam; mas, pelo tom e pela maneira com a qual as pessoas usavam esses termos, não deveria ser uma coisa boa, e ele não estava a fim de ser uma vítima. Ele não queria correr o risco de ser maltratado ou, no pior dos casos, excluído, então se esforçava para fingir ser alguém que não era e que gostava de coisas que na verdade detestava, mesmo sentindo que fazer isso era bastante triste.

Davi era um pré-adolescente que tentava cumprir todos os requisitos sociais que preocupava Analu e seus colegas de escola: não ser mais BV, passar desodorante e, claro, não ser falso com ninguém. Mas no fundo sabia que era diferente dos demais, só ainda não entendia bem o que aquilo significava. Apesar de já ter perdido o BV, nunca havia se apaixonado por alguém. Não que uma coisa tenha a ver com a outra, mas ele se perguntava por que nunca tinha ficado a fim de alguém de verdade.

Para Davi, beijar não tinha sido nada demais. Parecia que as pessoas superestimavam algo tão sem graça. Isso porque ele perdeu o BV numa festa em que alguns amigos e primos resolveram jogar o jogo da garrafa. Na vez do Davi, ele caiu justamente com uma das poucas meninas da festa e teve que beijá-la para cumprir o combinado do jogo. Ele não estava nem um pouco com vontade de fazer aquilo, mas o grupo esperava que ele o fizesse e, por sua vez, ele não conseguiu negar a demanda social.

Quando um casal apaixonado na novela ou num filme dão o primeiro beijo, parece que o tempo para e que a vida deles começa a fazer sentido. A trilha sonora deixa tudo mais dramático, claro, mas a sensação de dar aquele beijo parece preencher o interior do casal e dar aos envolvidos uma razão para viver. Não foi nada disso que o Davi sentiu ao beijar a menina. Primeiro que não pareceu — nem de longe — gostoso. Segundo que nenhum dos dois sabia direito o que estava fazendo. Terceiro que ter o beijo assistido por uma roda de quinze pessoas foi no mínimo desconfortável: na hora em que os lábios se tocaram explodiu um coro de comemoração: "UHUUUUU!". Por fim — e talvez o mais importante — Davi não estava nem um pouco interessado em perder o BV daquele jeito: ele tinha imaginado que esse grande momento seria dando um beijo apaixonado na pessoa amada, que anjos tocariam harpa no momento em que isso acontecesse e que fogos de artifício explodiriam no ar. O problema é Davi esqueceu que a vida real não é nada parecida com as comédias românticas que costumava assistir e ficou meio desapontado com o que era beijar. "É só isso?", pensou quando levantou depois do beijo e foi beber um refrigerante. Não fazia sentido que as pessoas se matassem pra conseguir beijar umas às outras. Foi assim que Davi entrou num hiato na sua carreira de beijoqueiro, enquanto seus conhecidos viviam se atracando a cada oportunidade.

Armário Vazio Não Para Em Pé: Baseado Em Closes, Corres e Fatos ReaisOnde histórias criam vida. Descubra agora