É muito tarde para dizer adeus *DEGUSTAÇÃO*

Capítulo 17 - Velha Infância

O processo de mudança do Victor durou dois dias, porque houve um problema com o caminhão que faria o transporte de seus bens, ele não compareceu na casa no dia combinado. O lado bom foi que, após uma longa discussão e longo pedido de desculpas da empresa, meu amigo conseguiu desconto.

O quarto de hóspedes se tornou o quarto do Victor. As cortinas roseadas que foram substituídas por uma de seu agrado. Ele colocou com estampa de Star Wars.

Eu e Fran fomos, enfim, apresentados à Cíntia, a namorada de Victor, que é uma pessoa muito amável. Cíntia é um pouco mais alta que nós dois e, na época, tinha alguns dos fios levemente avermelhados que se camuflavam no castanho escuro de maior parte das suas madeixas. Ela também tinha um piercing no canto direito do lábio inferior e usava uma calça jeans preta e blusa branca de manga comprida.

Grande fã de sombras e batons escuros, Cíntia nos revelou que possuía um sebo no bairro Liberdade, onde havia muitos livros sobre espíritos, ocultismo, coisas paranormais. Fran ficou empolgada e fez inúmeras perguntas a ela a respeito de tudo que podia se lembrar. Cíntia a explicava com paciência e doçura. Não demorou até se tornassem amigas.

Junto de Fran, contei a Cintia toda a história sobre o início da assombração e sobre como era a nossa vida em Sete Estações. Quando um esquecia detalhes importantes, cabia ao outro adicioná-los. E era eu quem adicionava mais, pois Fran não se lembrava de muita coisa dessa época, parecia haver um bloqueio em sua cabeça.

— E você não sabe como morreu? — Cintia perguntou para Fran.

— Não. — Ela fez uma pausa para pensar mais a fundo. — Só lembro que estava ventando e o som de um carro. Devo ter pegado um táxi, será?

— Pode ser, — falei — você se jogou do mirante da praia dos cristais e é bem longe de onde trabalhava.

— Não tem nada a mais para acrescentar? — insistiu Cíntia. — Uma intuição, um pensamento, qualquer coisinha?

Fran olhou para o nada, pensava, estava séria. Era nítido o esforço que fazia para se lembrar de algo.

— Nada — disse, entristecida.

Nossas conversas pareciam não levar a lugar nenhum, e isso deixava Fran profundamente magoada. Decidi que não a perturbaria mais com nenhuma lembrança do passado, a menos que ela quisesse. Cíntia concordou comigo, falando que não era bom ficar dando tantos gatilhos para minha doce assombração, pois espíritos são mais sensíveis que as pessoas geralmente são. Disse que dentro deles existe muitos sentimentos pesados (saudades dos que permanecem vivos, principalmente) e isso é ruim de mexer.

Depois disso, paramos de falar sobre Sete Estações, não fazíamos sequer menção a nada que remetesse o passado, e o humor de Fran voltou ao normal. Procuramos nos divertir, vários dias íamos ao sebo de Cíntia e comprávamos vários livros, fomos ao cinema e ao karaokê. Nesse tempo, Fran foi, de fato, tratada como uma humana. Sequer falávamos que ela era um espírito. E devido a esse tratamento, ela exalava felicidade.

Vê-la desenvolvendo uma conexão com Victor e Cíntia me fez pensar nas chances de Fran sumir após sentir os prazeres da humanidade após anos. O que você acha?

Sinto, contudo, dizer que ela não achou a luz do fim do túnel por causa disso. Ficaram esperançosos de que ela tivesse encontrado a paz? Mas devo lembrá-los que Fran ficou comigo por cinco meses. E isso que estou relatando começou a ocorrer a partir do terceiro mês, ou seja, em outubro. Tem muita coisa ainda, como, por exemplo, o meu terceiro plano para dar a ela a realização necessária para encontrar a paz.

Victor e Fran se tornaram a dupla da ação. Pareciam dividir o mesmo neurônio e somente um tinha força o suficiente para aguentar as loucuras do outro, as travessuras e cada ideia mirabolante que tinham. Em contrapartida, eu e Cíntia erámos os centrados do quarteto.