Capítulo 44

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Trabalharam bem juntos. Carla eliminou a maioria das lascas ao fazer uma experiência com o martelo. Precisara primeiro discutir com Arthur, cuja ideia de deixá-la ajudar fora sentá-la numa cadeira para ela poder olhar. Ele acabou cedendo, mas manteve um olho de lince nela. Não tanto por temer que estragasse, embora fosse em parte isso. Era mais por recear que se machucasse. Bastou-lhe apenas uma hora para perceber que, tão logo se obstinava num projeto, Carla trabalhava como uma profissional. Talvez tivesse sido meio negligente no acabamento da massa nas juntas, mas ele imaginou que ficaria nivelado com uma lixada. O tempo extra que exigiu não o incomodou. Na certa, era uma tolice, mas só tê-la ali já o fazia trabalhar mais rápido.

— Vai ser um quarto e tanto. — Carla deu uma coçada no queixo com as costas da mão. — Gosto mesmo do jeito como modela isso em forma de um pequeno L. Todo quarto civilizado deve ter uma sala de estar.

Ele queria que ela gostasse. Na mente, já conseguia vê-lo concluído, até as cortinas na janela, de voile azul, com largas tiras pregueadas prendendo as laterais fofas puxadas no meio para trás.

— Estou pensando em pôr duas claraboias.

— É mesmo? — Carla foi até a cama, sentou-se e inclinou o pescoço. — Você pode se deitar aqui e olhar as estrelas. Numa noite como esta, a chuva. — Seria gostoso, pensou, ao erguer os olhos para o teto inacabado. Seria adorável dormir ou fazer amor, ou apenas devanear sob o vidro. — Se decidisse levar esse ofício pra São Paulo, ganharia uma fortuna reformando sótãos.

— Sente saudades?

Em vez de olhá-la, Arthur ocupou-se com a medição de uma junta.

— De São Paulo? Às vezes. — Menos, ela percebeu, do que esperara. — Sabe o que ficaria bem aqui? Um banco sob a moldura da janela. — Empoleirada na cama, apontou uma à direita. — Quando eu era menina, sempre imaginei como seria maravilhoso ter um assento sob a janela, onde pudesse me enroscar e sonhar. — Levantou-se e abriu e fechou os braços. Era estranha a rapidez com que os músculos ociosos ficavam doloridos. — Passava quase o dia todo escondida no sótão e sonhava.

— Sempre quis escrever?

Carla mergulhou a mão mais uma vez no balde de massa.

— Eu gostava de mentir. — Riu e passou a mistura cor de lama sobre a cabeça de um prego. — Não das grandes mentiras, mas das inteligentes. Livrava-me das confusões inventando histórias, e os adultos em geral se divertiam o suficiente pra atenuar o castigo pelas minhas traquinagens. — Calou-se por um instante. Não queria lembrar os tempos difíceis. — Que música é essa?

— Patsy Cline.

Ela escutou por um momento. Não era o tipo de música que teria escolhido, mas tinha uma incisividade que a agradava.

— Não fizeram um filme sobre ela? Claro que sim. Morreu num desastre de avião na década de 1960. — Prestou atenção de novo. A música soava tão cheia de vida, tão vital. Não sabia se lhe dava vontade de sorrir ou chorar. — Creio que esse é outro motivo que me fez querer escrever. Deixar alguma coisa. Uma história é como uma música. Sobrevive à gente. Acho que tenho pensado mais nisso ultimamente. Você já pensou alguma vez em deixar uma coisa que dure?

— Claro. — Também mais recentemente, pensou, embora por diferentes razões. — Bisnetos.

A resposta a fez rir. Derramou a massa no punho do suéter, mas não se preocupou em limpá-la.

— É bem legal. Acho que pensaria assim, vindo de uma família grande.

— Como sabe que tenho uma família grande?

— Sua mãe comentou. Duas irmãs. A mais velha é casada e a mais nova adora fazer bolos. Tem, deixe-me ver, acho que são dois sobrinhos.

Ele só pôde balançar a cabeça.

— Você nunca esquece nada?

— Nunca. Sua mãe continua desejando uma neta, mas ninguém tem cooperado. Ainda tem a esperança de você abandonar as ruas e se juntar ao seu tio na construtora.

Pouco à vontade, ele pegou um arremate de quina e começou a martelá-lo.

— Parece que tiveram uma conversa e tanto.

— Ela quis fazer um teste comigo, lembra? — Ele enrubesceu, apenas um pouco, mas o suficiente para fazê-la querer abraçá-lo. — De qualquer modo, as pessoas vivem me contando detalhes íntimos de suas vidas. Eu nunca soube por quê.

— Porque você escuta.

Carla sorriu, considerando isso um dos maiores elogios.

— Então por que não está construindo apartamentos de condomínio com seu tio? Você gosta de construir.

— Isso me relaxa. — Assim como uma música de Nando Reis que tocava no rádio agora o relaxava. — Se fizesse isso todo dia, ficaria entediado.

Ela prendeu a língua entre os dentes enquanto derramava massa numa junção.

— Você está falando com alguém que sabe até que ponto pode ser tedioso o trabalho policial.

— É um quebra-cabeça. Já montou quebra-cabeças quando era garota? Os grandes, de duas mil e quinhentas peças?

— Claro. Após duas horas, trapaceava. Deixava todos loucos quando descobriam que eu havia quebrado a ponta de uma peça para fazê-la se encaixar.

— Eu passava dias num e nunca perdia o interesse. Sempre trabalhava da borda pro centro. Quanto mais peças a gente encaixa, maiores os detalhes; quanto mais detalhes, mais próximo da imagem completa.

Ela parou um instante, porque entendeu.

— Nunca sentiu vontade de ir direto ao centro e mandar os detalhes às favas?

— Não. Se você faz isso, acaba sempre procurando as pontas soltas, aquela peça enganadora que une tudo e torna a coisa certa. — Após martelar o último prego, Ed recuou para ter certeza de que fizera o trabalho direito. — É uma tremenda satisfação quando a gente encaixa a última peça e vê a imagem completa. Esse cara que procuramos agora... apenas ainda não temos todas as peças. Mas teremos. Assim que tivermos, vamos misturar todas até tudo se encaixar.

— Sempre se encaixam?

Ele olhou-a então. Tinha a maldita mistura manchada no rosto e uma expressão muito séria. Ele esfregou o polegar no rosto dela para tirar a mancha.

— Mais cedo ou mais tarde. — Largou a ferramenta e emoldurou aquele rosto nas mãos. — Confie em mim.

Eu confio. — Olhos bondosos, mãos fortes. Ela curvou-se mais para perto. Queria mais que conforto, precisava de mais. — Arthur...

Virtude IndecenteOnde histórias criam vida. Descubra agora