Capítulo 22

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— Obrigada por vir, irmã.

Carla viu que era tolice sentir-se estranha por apertar a mão de uma freira. Só que simplesmente não podia evitar a lembrança de quantas vezes tivera os nós dos dedos golpeados por uma com uma régua. Nem conseguia acostumar-se muito ao fato de que elas não usavam mais hábitos. A freira que se apresentara como irmã Alice tinha um pequeno crucifixo de prata com o conservador duas-peças preto e sapatos de salto baixo. Mas nada de touca feita de dobras nem manto.

— Todas as nossas preces estão com você e sua família, Srta. Diaz. Nos poucos meses que conheci Viviane, passei a respeitar sua dedicação e talento como professora.

Respeito. A palavra proferida mais uma vez como antes, em frio conforto, durante uma hora. Ninguém falou de afeto nem amizade.

— Obrigada, irmã.

Havia vários membros do corpo docente, além de um punhado de alunos na igreja. Sem eles, os bancos teriam ficado quase vazios: Viviane não tinha ninguém, pensou Carla, quando se instalou na parte de trás, ninguém que não houvesse comparecido por um senso de dever ou compaixão.

Também havia flores. Ela olhou as cestas e coroas na nave. Perguntava-se por que parecia ser a única pessoa que achava as cores obscenas nas circunstâncias. A maioria vinha da Califórnia. Um ramo de gladíolos e um cartão formal aparentemente bastavam das pessoas que haviam antes feito parte da vida de Viviane. Ou da vida da Sra. Jonathan Breezewood.

Carla detestou o perfume delas, assim como o brilhante caixão branco do qual se recusara a aproximar-se. Detestou a música que fluía em tom baixo pela nave e soube que jamais conseguiria ouvir de novo um órgão sem pensar na morte.

As armadilhas que os mortos esperavam dos vivos. Ou que os vivos esperavam dos mortos? Não tinha certeza de nada, a não ser de que, quando chegasse sua hora, não haveria cerimônias, lamentações, amigos e parentes fitando com olhos lacrimosos o que restara dela.

— Carla.

Ela virou-se, esperando que nada transparecesse de seu rosto.

— Jonathan. Você veio.

— Claro.

Ao contrário de Carla, ele olhava na nave o caixão branco e a ex-esposa.

— Ainda preocupado com a própria imagem, percebo.

Ele notou que cabeças se viraram ao ouvir a declaração da cunhada, mas apenas olhou o relógio.

— Receio poder ficar apenas para o serviço religioso. Tenho uma entrevista marcada com o detetive Picoli em uma hora. Depois preciso ir ao aeroporto.

— Que bondade sua encaixar o funeral da ex-esposa em seu horário. Não o incomoda, Jonathan, ser tão hipócrita? Viviane não significa nada, menos que nada, pra você.

— Não creio que seja o momento nem o lugar apropriado para essa discussão.

— Engana-se. — Ela puxou-o pelo braço, antes que ele pudesse adiantar-se e seguir em frente. — Jamais haverá melhor momento ou lugar.

— Se insistir, Carla, vai ouvir coisas que preferiria não saber.

— Ainda não comecei a insistir. Eu fico nauseada vendo você aqui dar uma de marido enlutado após tudo que a fez passar.

Foram os murmúrios que o levaram a decidir-se. Os murmúrios e os olhares irônicos e quase condenatórios. Apertando o braço de Carla, ele a arrastou para fora.

— Prefiro manter as discussões de família em privado.

— Não somos da mesma família.

— É verdade, e seria tolice fingir que algum dia existiu qualquer afeição entre nós. Você jamais se deu ao trabalho de disfarçar seu desprezo por mim.

— Não gosto de vernizes, principalmente sobre sentimentos. Viviane jamais deveria ter se casado com você.

— Quanto a isso, estamos de pleno acordo. Viviane jamais devia ter se casado com ninguém. Mal chegava a ser uma mãe adequada e, como esposa, era uma lastimável imitação.

— Como ousa? Como ousa vir aqui, agora, e falar assim? Você a humilhou, esfregou suas aventuras amorosas na cara dela.

— Seria melhor se eu fizesse isso pelas costas dela? — Com uma risada interrompida, ele olhou atrás de Carla um olmo plantado quando se pusera a pedra angular da igreja. — Acha que ela ligava? Você é mais tola do que eu julgava.

— Ela amava você. — Agora a voz de Carla saíra furiosa. Como aquilo doía, doía mais do que algum dia imaginara, ali, parada na escada onde ficara tantas vezes antes com a irmã. Na procissão dos festejos de Nossa Senhora, em maio, as duas metidas em vestidos brancos com babados; no domingo de Páscoa, com gorros amarelos e sapatos de couro fechados com uma tira no peito do pé. Haviam descido e subido aqueles mesmos degraus tantas vezes juntas na infância, e agora lá estava ela sozinha. A música saía baixa e pesarosa pelas frestas das portas. — Você e Toya eram toda a vida dela.

— Você está muito enganada, Carla. Vou lhe falar sobre sua irmã. Ela não gostava de ninguém. Não tinha paixão alguma, nem capacidade pra ter. Não apenas paixão física, mas emocional. Nunca deu um sinal de ligar pros meus casos, desde que fossem discretos, desde que não interferissem com a única coisa que realmente valorizava. Ser uma Breezewood.

— Pare com isso.

— Não, agora você vai escutar. — Ele segurou-a antes que ela corresse de volta para a igreja. — Não era só no sexo que ela se mostrava ambivalente, mas com tudo que não se encaixasse em seus planos. Viviane queria um filho, um Breezewood, e tão logo teve Toya, seu dever acabou. Ela era mais um símbolo que uma filha pra sua irmã.

Isso a atingiu em cheio, perto demais do lugar por onde seus pensamentos vagavam ao longo dos anos. E deixou-a envergonhada.

— Não é verdade. Ela amava Toya.

— Tanto quanto era capaz. Agora me diga, Carla, algum dia você viu um único ato espontâneo de afeição dela, com você, com seus pais?

— Vivi não era expansiva. Isso não significa que não sentisse.

— Era fria. — Carla atirou a cabeça para trás, como se houvesse levado um tapa. Não foi uma surpresa para ela; a surpresa foi compreender que nutrira a mesma opinião secreta durante a vida toda. — E o pior é que acho que ela não podia evitar. Durante quase todo o casamento, cada um seguiu o próprio caminho, porque convinha a ambos.

Isso a deixou pior que envergonhada. Deixou-a doente. Porque sempre soubera, vira, mas se recusara a acreditar. Percebeu o jeito como ele ajeitou os cabelos quando a brisa leve os despenteou. Era o gesto casual de um homem que preferia não ter qualquer imperfeição. Viviane podia ter sido culpada, mas não o fora sozinha.

— Então deixou de ser conveniente pra você.

— Correto. Quando pedi o divórcio, Viviane mostrou a primeira emoção que eu tinha visto em anos. Negou, ameaçou, até implorou. Mas não era a mim que tinha medo de perder, era a posição na qual se habituara a se sentir bem. Quando viu minha determinação, foi embora. Recusou qualquer tipo de acordo. Já tinha partido três meses antes quando me telefonou e perguntou por Toya. Durante três meses, não viu nem falou com a filha.

— Ela estava sofrendo.

— Talvez. Não me importava mais. Eu disse que ela não ia arrancar Toya da sua vida, mas faríamos acordos pra que ela a visse durante as férias escolares dela.

— Ela ia lutar com você por Toya.

— Eu sei.

—  Você sabia — disse Carla, devagar. — Você sabia o que ela estava fazendo?

— Sabia que tinha contratado um advogado e um detetive.

— E o que você teria feito pra impedi-la de ficar com a custódia?

— Tudo que se tornasse necessário. — Mais uma vez, ele olhou o relógio. — Parece que estamos atrasando o serviço. Abriu a porta do vestíbulo e entrou.

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