Morto.
Era a sensação que parecia dominar o corpo de Afonso, pesado em um estado inquietante de letargia e recobrando vagarosamente a consciência, os ruídos ao seu redor alcançando seus ouvidos, porém, ainda indistinguíveis. O rapaz abriu repentinamente os olhos, apenas para fechá-los quando uma luz incessante atingiu sua íris.
Repetiu cuidadosamente o movimento, deparando-se com a visão de um céu cinzento, apesar dos tímidos raios de sol que se aventuravam entre as nuvens. Lentamente, moveu a cabeça para o lado, tendo a visão das costas de um guarda distraído, cavando o que parecia ser uma cova rasa.
Lembranças da noite anterior bombardearam a mente de Afonso, que sentiu-se tonto por um momento. Fechou os olhos ao ver o soldado se virar em sua direção e se aproximar para revistar suas vestes em busca de algo de valor e tirar suas botas, que provavelmente seriam passadas ao próximo moribundo condenado a mofar naquele inferno de lugar.
Permaneceu imóvel ao sentir seus pés ficarem desnudos, seus olhos milimetricamente abertos permitindo a visão da movimentação do soldado, que se afastou mais uma vez. Aquela era a deixa que o ex rei precisava. Levantando-se silenciosamente, o moreno se aproximou pelas costas do outro homem, circulando o pescoço desprotegido com seus braços, aplicando um golpe certeiro para incapacitá-lo.
Contou mentalmente até vinte, se certificando de que o outro estivesse inconsciente antes de deitá-lo no chão, caminhando até a besta que repousava em uma pedra grande, colocando-se para fora daquele buraco pútrido que era utilizado como vala comum de Angór.
Retornou até o terreno principal da pedreira sem que fosse percebido, escondendo-se para que pudesse localizar seus companheiros, que aguardavam seu sinal enquanto cumpriam suas funções diárias, longe de qualquer olhar suspeito.
Após um momento de silêncio, todos ouviram ao longe uma espécie de assovio que se assemelhava ao canto de um pássaro, sorrisos mínimos crescendo em seus lábios ao acenarem imperceptivelmente com a cabeça uns para os outros.
É hora de ir embora daqui.
Em um rompante, Cássio atacou Tiago com a ferramenta em suas mãos, que revidou, iniciando uma briga generalizada que desviaria a atenção de todos ao seu redor por tempo suficiente para que o ex rei colocasse em prática a sua parte do plano.
Afonso, aproveitando a oportunidade, se moveu com rapidez até John, que se aproveitou da distração para se posicionar no local previamente combinado, que os levaria a uma das muitas trilhas ocultas pelas árvores até os limites dos paredões da pedreira, desembocando em uma estrada de terra batida que os levaria para longe dali.
Na entrada do caminho, houve apenas o silêncio por um longo segundo, até que ele pôde reconhecer as vozes de Tiago e Cássio se aproximando de sua localização, gritando para que corressem, os guardas os seguindo com tudo o que tinham. Como eles não haviam sido recapturados estava além de seus pensamentos, porém, Afonso sabia que não era hora de pensar sobre aquilo.
É hora de correr.
Sem hesitar, os dois se moveram, sendo seguidos pelos outros dois e por alguns guardas enraivecidos trilha adentro. Mesmo que nenhum deles conhecesse o caminho bem o suficiente, não era realmente relevante, não quando aquela era a única oportunidade de escapar com vida daquele lugar, pelo menos até que encontrassem um abrigo seguro.
Afonso sabia que era um plano arriscado e que algum deles poderia acabar ficando para trás. Ele sabia que estavam arriscando suas vidas, mas infelizmente era necessário. Enquanto corria, o ex rei pedia para qualquer entidade que conhecia para que todos conseguissem se salvar, para que pudesse cumprir a promessa à Catarina.
Foi pensando na princesa que ele aumentou a velocidade de seus passos, exigindo mais de seu corpo e quase levando-o ao limite.
Eu não posso morrer aqui.
Afonso se recusava a cair antes que conseguisse chegar até ela e saber que estava bem, que estava segura, viva. Algo em seu peito se agitava dolorosamente toda vez que a imagem da morena surgia em sua mente.
Preciso vê-la, tocá-la, senti-la mais uma vez.
Em meio a corrida mata adentro, percebeu que haviam ganhado certa vantagem em relação aos guardas, e gritou por cima do ombro para que se separassem, sendo prontamente atendido pelos outros três. Afonso sabia que eles eram inteligentes o suficiente para encontrarem o fim da trilha.
Ele preferia ir para o inferno literal antes de retornar para aquele buraco esquecido por Deus. Garantiria seu lugar no purgatório antes de perder a oportunidade de salvar Catarina.
Perdeu os outros três de vista, se colocando a correr à esquerda do caminho principal, embrenhando-se entremeio as árvores de porte médio e relva alta da vegetação, carregando a besta em suas mãos, procurando por um lugar onde poderia se esconder e se livrar dos guardas que o seguiram. Uma olhadela sobre o ombro o fez notar que apenas dois estavam em seu encalço.
Seria fácil, rápido e doloroso para eles.
Encontrou um galho grosso de um carvalho que estava coberto por uma espécie de cortina formada com as folhas da própria árvore e correu para lá, escalando-a com facilidade praticada e se posicionando com a besta armada, apontada para onde ele sabia que os soldados passariam em sua procura.
Agora é só esperar.
O único problema da espera é que sua mente continuava fervilhando. Com a arma empunhada, ouviu quando os soldados se aproximaram com cuidado, procurando-o em todos os lugares. Mesmo andando devagar em uma tentativa de furtividade, os homens eram barulhentos o suficiente para entregarem sua posição.
Idiotas.
O galho em que estava posicionado oferecia uma visão ampla, escondido o suficiente pelas folhas. Ajustou a besta em seu aperto, pronto para disparar no primeiro deles que surgisse em sua linha de visão. Ambos empunhavam suas espadas, uma vez que não esperavam por um ataque furtivo vindo do alto. Quando o mais baixo deles fez um movimento para a esquerda oferecendo a abertura necessária, Afonso fechou um olho, disparando sem hesitar.
A flecha acertou seu destino, arrancando um grito estrangulado de dor quando a ponta atravessou a garganta do homem, que caiu no chão agonizando e sufocando em seu próprio sangue, enquanto o som de sua respiração engasgada rompia o silêncio daquela parte da floresta.
O mais alto olhou ao redor, procurando, a espada empunhada firmemente em suas mãos trêmulas. Silencioso como um puma, Afonso desceu de seu esconderijo e se pôs a caminhar na direção do homem, aproveitando a grama alta para se esconder e usar a seu favor o elemento surpresa.
O guarda caído, após um suspiro dolorosamente lento, ficou em silêncio, a vida abandonando seu corpo segundos antes de o ex rei atacar com precisão mortal o rapaz desavisado, torcendo seu pescoço de modo que um som de estalo foi ouvido. Soltou sem cerimônias o corpo flácido, que caiu com um baque surdo no chão, agarrando a espada em sua mão.
Sem uma palavra, Afonso agarrou a segunda espada e se virou. Com uma arma em cada mão, o moreno rapidamente percorreu o caminho de volta à trilha principal para se reunir com seus companheiros de fuga.
Espero que todos estejam vivos.
Fazia anos desde que teve que lutar com espadas duplas, mas sabia que poderia contar com a memória muscular de seu corpo para realizar os golpes aprendidos em sua juventude. Afonso realmente não gostava de ter que sujar suas mãos com o sangue, mas sabia que teria que matar alguns deles se quisesse se proteger e proteger seus companheiros.
Não era uma opção deixar qualquer um deles para trás. O ex rei ouviu a voz de Cássio gritar seu nome ao longe, o que fez com que ele apressasse os passos na direção do chamado. A adrenalina corria quente em suas veias, mantendo o cansaço longe de seus músculos até o momento em que estivessem seguros.
Era hora de recuperar o que era seu, de encontrar Catarina e cumprir sua promessa. Afonso precisava relembrar a todos a razão para ter sido escolhido como sucessor de seu pai. Ele também precisava mostrar a Rodolfo o que os Monferrato tinham de pior quando provocados ou desafiados.
E se uma quantidade significativa de sangue fosse derramada no processo, bem, não há muito o que ser feito.
É hora de retomar aquilo que é meu.
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Choices - Em Revisão
RomanceAquele que um dia chamara de irmão, hoje resumia-se meramente ao homem que carregava o mesmo sangue que o que corria em suas veias. Aquela que um dia jurou amá-lo pelo que ele era e não por sua coroa, que a repudiara como se houvesse a mais mortal d...