Não recorri a este livro para falar mal do mundo — não exatamente —, dos países e cidades, para dar apoio moral a pessoas que uma vez tiveram seus corações lambuzados de amor e em seguida de dor e dizer, da maneira mais simulada e irrealista possível, que tudo passa; para mostrar um ponto de vista e exigir que as pessoas o sigam, para falar sobre política, reclamar do presidente e os políticos fodidos e induzir um indivíduo a acreditar no que me parece correto; para falar da economia, dos preconceitos, dos abusos, da criminalidade e de todo o resto que compõe esta coisa assustadora que chamam de Terra.
Não, não. Vim para falar talvez de amor, dos meus pensamentos poetizados, a minha profunda solidão e, quem sabe, só quem sabe, reclamar um pouquinho, só um pouquinho sobre o quanto as pessoas são estúpidas.
Normalmente eu pegaria um livro motivacional ou de autoajuda para pessoas de coração partido, abriria, leria as cinco primeiras linhas, pesquisaria o nome do autor para olhar bem precisamente para a sua cara e acenderia um cigarro e riria e riria, pensando mais uma vez: "Puta merda, o mundo se foi!" E por quê? Acontece-me que ter meu coração partido foi a melhor coisa que já me ocorreu!
Cheguei a um estágio de ignorar a parte da autoajuda e rir logo de cara, sobre mim mesma e sobre as pessoas que ainda estão por trás da novidade. Rir, rir e tentar rir ainda mais quando me faltam risadas, esperançosa de que cheguem logo ao meu nível e riem comigo e celebrem comigo o dia de suas vitórias e não me deixem tão mais à frente.
E de que vitória falo? A vitória do conhecimento de que o mundo já acabou e estamos vivendo o pós-apocalíptico. Rir sobre as ruas sujas de tristeza, sujas de doenças e dor. Quando é que o resto irá perceber que o câncer está no mundo e que somos nós as vítimas? Mas que ideia! O bom já se foi, o que era para ser nunca foi e jamais será. Então, restam-lhes e resta-me rir antecipadamente.
Vivemos em um lugar onde o futuro já é conhecido e o passado, uma dádiva — este que nos sequestra e nos mantém vivos, já estando morto e nos matando em segredo. Isto posto, tenho minhas dúvidas sobre quem vive no passado, no sentido de se esconder estupidamente do presente. Eu mesma faço isto de vez em quando: vivo em frequente consternação numa penumbra entre o passado e o futuro, com um âmago, já gasto para esse eu, suplicando às inefáveis surpresas que ainda não me aconteceram que apareçam indeléveis e logo. Se há algo de desgraçado em atravessar o cruzamento, é isto: não se surpreender com coisa alguma. Ao menos, não com tudo. Ainda espero ver o Sol nascer no Oeste e se pôr no Leste e escrever sobre o dia em que me surpreendi com o mundo ficando ao contrário de um modo, não totalmente, inócuo.
Então, há esta questão que me belisca: vivem alguns no passado para prolongarem o que um dia foi surpreendente e aceitável, para alimentarem suas ideias convictas de que o mundo pode melhorar de alguma forma ou, da maneira mais inusitada possível, acreditar que o tempo passado é capaz de se espelhar no tempo presente? A conclusão? Sempre chego na parte em que minha cabeça me diz que continuam sendo estúpidas dentro de qualquer resposta aceitável que eu tivesse. Continuariam estúpidas por seus pensamentos, crenças e ideias. São estúpidas desde o momento em que pensam que estão correndo do inevitável.
Talvez se as pessoas fossem só um pouco mais anômalas, quem sabe as coisas fossem diferentes. Os lugares entram em estado abominável quando ao redor há espelhos em pessoas e em paredes. Pensam estar vendo roupas diferentes, escutando vozes diferentes, falando coisas extraordinárias. Mas vestem as mesmas ideias, escutam os mesmos pensamentos, falam as mesmas baboseiras de sempre. E o que há de interessante nisto? Nada. Vive-se numa realidade maçante onde o diferente é imundo para mundanos feitos de espelho, e encontrar um divergente que não tenha sido cortado por seus vidros é o mesmo que tentar encontrar uma nova cor.
Quem me dera eu viver num mundo desigual, no bom sentido. Esta talvez seja a maior razão das minhas tristezas e, com certeza, o melhor motivo para eu me recorrer às letras. Quem sabe esteja nelas e somente nelas a diferença que procuro: um e vários universos com a capacidade anos-luz do pensamento ou criação humana. O homem procria todos os dias e todos os dias insiste em repassar as mesmices de sempre para seus herdeiros. Criam máquinas, fantoches que são lançados ao mundo e controlados por títulos superiores criados com as mesmas mesmices, mas que agora são faladas de maneira complexa para que o sujeito se sinta importante: saia dessa! Não há nada de particular em manifestar nem mais nem menos do que a mesma exibição de sucesso, o mesmo motivo barato que leva um homem ao palco e que, com sorte, o tira de lá no meado dos quarenta. Por isto recorro-me à poesia, à arte, aos belos poemas e histórias. São as letras que fundem as possibilidades excessivas, as várias combinações esplêndidas, os desacordos que entram em acordo quando juntos. E se estou sendo precipitada em viver mais no mundo de cá do que o de lá, que seja, escreverei até que me falte um vocabulário mental! Não por misericórdia, não por atuação — ainda há os que pensam que todos os poetas mentem — e tampouco por muito reconhecimento. Tenho para mim que demasiado reconhecimento aleija as pessoas, suas mentes (seus interesses; suas vontades; suas almas e seus pensamentos mais inapropriados) e isto é devastador.
Escrevo-me, escrevo-vos, para que possamos, se houver alguma pequena chance, finalmente rirmos todos juntos, na borda do mundo, de toda essa palhaçada depois de apreciarmos um pouco a bela arte fodida que é viver antes do cruzamento.
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Le Bord
Poetry"Escrevo-me, escrevo-vos para que possamos, se houver alguma pequena chance, finalmente rirmos todos juntos, na borda do mundo, de toda essa palhaçada após apreciarmos um pouco a bela arte fodida que é viver antes do cruzamento."