CAPÍTULO I

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A céu era lindo: ali, tão longe da terra, as constelações se tornavam visíveis outra vez aos olhos humanos. As estrelas competiam entre si a melhor forma de brilhar e criavam um singular espetáculo aos olhos de quem ousasse parar por um só momento para poder assistir. O cheiro inebriante de mar salgado não era mais tão estimulante depois de tantos anos, mas gerava uma acalentadora e perigosa sensação de lar. Perigosa, porquê ela sabia que talvez nunca mais quisesse sair dali, mas, ainda sim, se sentia bem, pois foi ali, no oceano, que teve a oportunidade de descobrir onde poderia chegar e o que o mundo reservava para a sua história. Uma gaivota, de penugem branca como a neve, sobrevoou o mastro do navio, se destacando pela noite escura e, de repente, a menina sentiu uma incômoda vontade de também saber como voar.
- Capitã - a voz grave emergiu na noite silenciosa, causando um sobressalto na moça, que ainda olhava o animal, distraída. - O que foi que viu?
- Nada. - Respondeu, sonhadora.
- Alice, você parece que vive bêbada por aí. - Brincou o rapaz, com uma indecente risada nasalada. - Só vim te avisar que terminei o que me pediu e vou descansar. Deveria ir também. - A menina o analisou por alguns segundos: Nacho era o có-capitão de seu navio, um homem que, com atitudes de coragem e fidelidade, havia provado seu valor e se destacado entre os demais. Era bem mais alto que Alice, forte como um touro e com uma feição que deixava qualquer um acuado. Haviam se conhecido durante a passagem do Maravilha pelo México, quando ele lhe implorou um serviço á bordo e ela sentiu que não deveria negar. Usavam roupas iguais e o único estereótipo feminino que Alice ainda possuía, era seu cabelo, que havia crescido totalmente e conferia-lhe cachos louros que se movimentavam com a brisa noturna.
- Já vou, amigo. Durma bem. - Nacho acenou, com um sorriso, e se virou para sair. - Ei. Você sabe que confio minha vida á você, não sabe? - questionou, sentindo uma estranha vontade de tocar no assunto naquele momento.
- Eu também confio a minha á ti, irmã... Mas, o que quer dizer?
- Se algo me acontecer, não sei... Talvez, um dia aconteça... Cuide do navio. Continue com os negócios. Certifique-se que minha família vai ficar bem.
- Alice Kingsleigh, você bebeu demais hoje.
- Prometa. - Nacho interrompeu sua risada, observando a seriedade no rosto da capitã.
- Prometo, garota. - E saiu.

Alice tomou mais um gole do cantil prateado, sentindo o álcool queimar enquanto descia pela sua garganta. Enquanto fitava a imensidão escura do horizonte, sombreada pela luz forte de uma lua cheia intensa, se pôs á pensar. No ano anterior, logo após cortar qualquer relação com Hamish, sua família e seus negócios, descobriu que muitas outras empresas inglesas acreditavam em seu método de trabalho e fariam o impossível para terem suas marcas na lista de patrocinadores do Maravilha. Alice chefiou uma imensa expansão inglesa às sedes chinesas, abrindo canais comerciais importantíssimos para a economia de seu país, tornando seu nome um dos mais noticiados e procurados de toda a Inglaterra. O retorno financeiro foi maior do que ela poderia imaginar e seu primeiro investimento foi uma grande casa em terra firme, para que sua mãe se acomodasse ao serviço de um milhão de empregados dedicados. Hellen passou alguns meses de sua vida á bordo, mas logo descobriu que esse estilo de vida não era parecido com o seu e começou á demonstrar uma irreverente infelicidade com as circunstâncias. Alice havia conseguido a liberdade que tanto quis, o dinheiro vinha em maior quantidade do que poderia guardar e finalmente poderia oferecer tranquilidade para o resto da vida de sua amada mãe. Mas nada disso á satisfazia: algo ainda estava em falta.
- Quem sabe, se eu tivesse alguns filhos? - Falou consigo mesma. - Não, de jeito nenhum. O cocô... E o choro... E o cocô... Não! Definitivamente, não é pra mim. - Afirmou, abanando as mãos. Talvez, seria o amor que lhe faltava? Os carinhos de um homem ou mesmo de uma mulher, poderiam dar-lhe uma nova perspectiva á essa altura. Mas nunca, nem uma só vez, houve alguém que ocupasse-lhe a mente, que a fizesse sentir coisas como aquelas descritas nos livros que leu. Exceto, talvez... Não!

Alice não ficou surpresa quando, á certa altura da noite, percebeu uma iluminação verde fluorescente partir por debaixo do casco do navio: aquilo estivera perseguindo-a por dias. Não podia ser natural, por duas razões: o mar não brilha e luzes não andam, tal como aquela, que a seguia onde quer que fosse. Com indiferença, atirou o cantil vazio no chão, sem tirar os olhos da figura estranha que á encarava de volta. Já ouvira histórias sobre sereias, que puxam os marinheiros para o fundo do mar, mas não havia cantoria: não havia nada, além do silêncio sepulcral da madrugada e do emanar medonho daquela luz verde. Era um convite, isso ela sentia; seria, talvez, aquilo que estivera secretamente esperando por todos esses anos? Não podia ser... Não há a menor chance de retorno, isso é impossível.
- Eu acreditava em seis coisas impossíveis antes do café da manhã. - Murmurou para si mesma. E se fosse? - Existe uma poção que te faz encolher. - Alice começou á subir pela grade de proteção do navio. - Existe um bolo que te faz crescer. - Com cuidado, segurava as barras de ferro, para que não escorregasse por acidente. - Animais podem falar. Gatos podem desaparecer. E a sexta, Alice? - Repetiu para si mesma. - Eu posso voltar. - E pulou. 

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⏰ Última atualização: Jun 14, 2022 ⏰

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