Qualquer um,

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(aviso de gatilho: depressão, suicídio, automutilação, cenas grotescas com detalhes e narração de animais morrendo)


    Essa é uma carta estranha. Nem sei se considero uma carta, para falar bem a verdade. Eu também não sei realmente pra quem ela é, mas se você está lendo, ela deve ser pra você.

    Não é como se fosse uma mensagem foda que vai mudar a sua vida ou algo do gênero. Apenas quero relatar algo, mas depois de morto é muito difícil encontrar alguém a quem posso relatar esse acontecimento.


    De qualquer forma, sente-se, pegue algumas pílulas de paracetamol para passar o tempo mastigando. Vamos conversar.

    Hoje eu lhe contarei a história de como eu morri.


(...)


    A alguns meses atrás as coisas estavam ficando meio esquisitas: sempre que eu estava dentro da minha linda casinha algo estranho acontecia. Era eu pisar no azulejo branco da sala e meu peito começava a doer como nunca. Bizarro!

    Não demorei a perceber que aquele mal só vinha de dentro da minha residência, mas mesmo assim, aquela era a minha casa. Eu não podia sair dali só pelo fato de que me fazia mal, é um motivo bobo demais, não é...?


    O tempo foi passando, e o mal estar além de me visitar começou a morar comigo. Ele estava lentamente me fazendo desistir. Tirou minha vontade de varrer o chão, lavar a louça, levar o lixo para fora e até mesmo sair de casa. Quando eu menos percebi, me vi preso no mesmo lugar do sofá. Literalmente preso, não conseguia me levantar dali.

    Todos os dias, todas a horas, todos os minutos eu estava sentado na mesma posição. Às vezes comendo a cada cinco minutos, às vezes comendo uma vez por semana; às vezes batucando meus pés, às vezes roendo minhas unhas; às vezes me enforcando com uma camiseta velha, às vezes chorando até transbordar.


    E esse foi meu cenário rotineiro. Parecia tranquilo para mim, ao mesmo tempo que caótico. Um ser humano sentado num sofá mofado, com tudo à sua volta encardido, pilhas de louça na pia, lixo e comida podre por toda a casa, além de... fezes e urina (o que eu poderia fazer? eu estava preso!).

     Eu me acomodei, me adaptei e me conformei em viver na sujeira.


    Como consequência da imundice que eu vivia, comecei a ouvir uns chiados finos e baixinhos vindos das paredes. Logo eu estava vendo algumas caldas brincalhonas de ratos correndo rapidinho entre as portas dos cômodos. Mas, sinceramente, eles eram tão poucos e tão inofensivos. Eram só uns três, andando pela minha casa e comendo a comida estragada do chão. Eu sempre gostei muito de animais mesmo e eles não estavam me atacando, então não me importei.

    Como eu gostaria de ter me importado...


    Nessa brincadeira de ignorar esperando que vá embora, eles começaram a se reproduzir ao mesmo tempo que outros foram saindo dos ralos da casa.

    E logo eles se tornaram tantos que eu não conseguia mais dormir. Estava sempre ouvindo sua barulheira ao redor da minha cabeça, caminhando com suas milhares de patinhas pelo meu sofá velho.

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⏰ Última atualização: Jun 22, 2022 ⏰

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