Prólogo

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Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 1964.

Meu caro amigo,

Escrevo esta carta na esperança de que possa me ajudar. Veja bem, em sua última carta para mim você disse que me ajudaria com o que fosse preciso, espero que cumpra sua promessa e não tenha sido mais uma daquelas suas frases treinadas para parecer educado (não que você não seja educado, em seu tempo no seminário você demonstrou grande apreço por todas as coisas vivas, mas talvez não seja o mais versado na natureza humana, não digo isto para ofender, o irmão sabe que a sinceridade sempre foi o meu bem, mas também o meu mal).

Alguns dias atrás recebi a visita de um primo que, acredite se quiser, está engajado com alguns movimentos universitários comunistas. Peço que não repita isto para ninguém, pois é um primo muito amado, apesar de desajuizado. Lembrei imediatamente de você! Você pensa que eu não sabia, mas eu percebia sim quando escondia seu exemplar daquele livro vulgar escrito por Karl Marx sempre que alguém se aproximava. Me diga, meu amigo, você também acredita nesses ideais socialistas?

Não pergunto com intenção de prejudicá-lo, é apenas uma curiosidade sincera de um velho padre. Na época de minha juventude, antes de decidir enveredar pelos caminhos da fé, conheci uma mocinha arredia chamada Celina, talvez você não acredite, mas cheguei a pedir sua mão em casamento. Imagine só! Eu, casado!

Quis Deus que seu pai não aceitasse o noivado e tive que correr de sua casa sob chuva de bala. Pois bem, Celina era estudante da escola normal e seu grande sonho era ser professora, gostava de passar seu tempo com os pequenos e amava se lambuzar de jabuticaba recém colhida do pé, apesar de seu jeito inocente, Celina, assim como você, e assim como meu primo, tinha ideias demais. Sonhava com um país igualitário onde as mulheres teriam os mesmos direitos que os homens e os pobres seriam detentores do capital, eram sonhos bonitos, mas impossíveis. Soube algum tempo depois que ela havia se envolvido na tal Intentona Comunista e infelizmente, desapareceu. Vargas era um presidente maldito, não era? Deus que me perdoe.

Encontrei seus pais um par de vezes depois de seu desaparecimento, uma para dar minhas condolências e outra para rezar uma missa por sua alma. Eles me procuraram na paróquia onde eu servia e disseram que se arrependiam de não ter permitido o casamento, talvez ela ainda estivesse por aí e teríamos tido uma linda família. Mas tudo acontece conforme as vontades de Deus, e Ele quis que eu estivesse aqui, guiando seu rebanho e dedicando minha vida à ele. Rezo pela alma de Celina todos os dias antes de dormir e rogo à Deus e à Virgem Maria que ela esteja feliz, comendo jabuticaba e lendo poesia.

Como sabe bem, outro defeito que carrego é o fato de que sou extremamente prolixo. Escrevo para pedir ajuda, mas contextualizo até demais... Bem, aqui está o motivo de minha inquietude: soube de fontes confiáveis ligadas ao alto escalão da Igreja que os militares planejam derrubar Jango do poder. Apesar de não compartilhar de ideias comunistas e revolucionárias, temo por nosso país, como homem de Deus, como cidadão e como pai.

Meu amado Guilherme, peço que não me condene, pois eu mesmo tenho me condenado todos os dias de minha vida. Quando conheci Celina, eu era um rapazote, não devia ter mais do que dezessete anos e acabei cedendo aos desejos da carne. Fui fraco. Me deitei com ela uma única vez, para nos despedirmos, veja bem... Mas nunca podemos adivinhar os planos de Deus e desta noite, uma criança nasceu. Eu não sabia de sua existência, Deus é testemunha que virei padre sem saber que também era pai. Os pais de Celina mantiveram a menina escondida, é uma menina... Linda como a mãe e tão curiosa quanto. Foi deixada na porta do convento acompanhada de uma carta endereçada à mim, e aqui foi criada, entre as freiras e sob as bençãos de Deus e Nossa Senhora de Fátima.

Imagino que deva estar chocado. Eu também fiquei... Mas já fazem dezessete anos desde o dia em que ela apareceu na minha vida e não se passou um dia em que eu não me senti culpado por não ter lutado para ficar com a mãe dela. Flávia não sabe que sou seu pai e nem tem memórias de sua mãe, ela é uma noviça aqui e é brilhante! Sei que orgulho é um pecado grave, mas não consigo evitar de senti-lo sempre que a vejo. Eu a amo tanto, Guilherme! E sei que não deveria fazer distinção entre as ovelhas do meu rebanho, mas ela realmente é a mais brilhante. Puxou
à mãe.

Creio que não preciso nem dizer que tudo que está escrito nesta carta requer o mais alto nível de confidência, não é? Você sempre foi discreto. Dito isto, terei que me ausentar indefinidamente, me juntarei ao meu primo para conseguir mais informações, mas não posso deixar a paróquia sozinha, não posso deixar Flávia sozinha. Por isso peço, meu amigo, meu irmão, que venha. Assuma o convento, cuide de minha filha e reze para que eu retorne são e salvo.

Apenas venha,

Daniel

Lord Have Mercy - FLAGUIOnde histórias criam vida. Descubra agora