Flávia estava atrasada de novo. Andou com passos rápidos pelos corredores, tentando esconder a franja rebelde por baixo do véu enquanto o fazia. Já era a terceira vez no mês que ela se atrasava para a missa matinal e suspeitava que a Madre Superiora não seria tão generosa quanto nas outras vezes. Com certeza a encarregaria de algum dos trabalhos mais pesados do convento, como esfregar a batina do padre Daniel, que já devia ter mais de 100 anos.
A jovem noviça não se lembrava direito do dia em que havia chego no Convento Nossa Senhora de Fátima, ela não devia ter mais do que seis anos quando foi deixada na porta da instituição com nada além de uma muda de roupas e uma boneca de pano surrada. Cresceu dentro da religião, sendo cuidada pelas freiras e brincando com as crianças que vinham para as aulas ministradas por Irmã Isabel na Escola Dominical.
Era grata pelas freiras. Grata por sempre ter tido comida na mesa e um teto em cima de sua cabeça. E apesar de sonhar acordada com uma vida fora das paredes do convento, ela sabia que sua vocação era a de servitude. Foi por causa disso que havia sido deixada ali e acreditava fielmente nos propósitos Dele. É verdade que talvez tenha esperado demais para finalmente se decidir, não era comum uma noviça com vinte e três anos, mas Flávia acreditava que o tempo que levou para finalmente se entregar, havia sido essencial para que o fizesse de coração leve.
Em breve proclamaria seus votos e poderia ser oficialmente considerada uma irmã, como as mulheres que tanto admirava. Já havia até escolhido seu novo nome: Madalena, como a fiel escudeira de Jesus. Mal podia esperar para finalmente poder se mudar para o prédio principal e dividir o quarto com sua amada amiga, Irmã Esther.
Finalmente alcançou a capela e com um suspiro aliviado por não ouvir nenhum cântico, empurrou as pesadas portas de madeira. A jovem suprimiu a vontade de sair correndo quando todas as cabeças se viraram para encará-la. A Madre Superiora a olhou com reprovação e fez um movimento rápido com a cabeça para que ela se sentasse de uma vez, Flávia sabia que a punição que viria seria terrível. Abaixou a cabeça e se juntou às outras noviças na última fileira.
– Por que a missa ainda não começou? – Sussurrou para Bianca, uma adolescente franzina de olhos azuis.
– Eles vão apresentar o novo padre, parece que o padre Daniel está de licença – A mais jovem sussurrou de volta.
Flávia tentou vasculhar em sua mente alguma lembrança que indicasse a ausência repentina do padre de cabelos brancos, mas não achou nenhuma. Ficou triste, padre Daniel estava lá a mais tempo do que ela e seria impossível não sentir falta dos olhos gentis e palavras calorosas que sempre foram marca registrada do sacerdote.
– Estamos muito felizes em tê-lo conosco, Padre Guilherme – A voz da Madre Superiora a arrancou de seus pensamentos e a fez olhar para o altar onde um homem alto e de cabelos um pouco grisalhos tinha uma expressão séria – Nosso convento é modesto, mas somos muito fiéis ao à Deus e à Nossa Senhora de Fátima. Tenho certeza de que gostará de assumir nossa paróquia.
– Obrigado, Madre! – O novo padre abraçou a senhora antes de se voltar para o resto da congregação — É uma honra estar aqui para assumir o posto deixado pelo Padre Daniel, ele foi meu mentor no seminário e desde então foi também o meu amigo querido, com quem tive a oportunidade de trocar correspondências e ensinamentos por anos. Quando ele me pediu para assumir a paróquia, eu sabia que não podia desapontá-lo. Tenho certeza que nos daremos muito bem e realizaremos coisas grandiosas juntos. Agora, por favor, abram a Bíblia em Coríntios 6:13.
Flávia teve que se esforçar para não cochilar durante a missa, a voz do novo padre era incrivelmente relaxante e o fato dela ter ficado acordada até tarde na noite anterior não ajudava a mantê-la acordada. Alguns dias antes, quando a noviça estava ajudando algumas irmãs com os donativos, seus olhos caíram sobre um exemplar usado e antigo de um livro de romance, ela sabia que era errado, mas, quando ninguém estava olhando, escondeu o livro debaixo de suas vestes e o levou até seu quarto.
Rezou pedindo perdão a Deus e até tinha planos de confessar o pecado no confessionário, mas apenas quando terminasse de ler, não queria correr o risco de ter seu pequeno prazer confiscado antes do tempo. Convenceu a si mesma que não estava roubando, afinal assim que as freiras soubessem o conteúdo do livro ele iria para o lixo, ou pior, seria queimado.
O problema era que a história de amor proibido era deliciosa demais e a mantinha acordada sob luz de velas para descobrir o destino dos amantes. Ela gostava de sonhar acordada e, se jamais viveria uma paixão ardente, se aprofundaria nas histórias fictícias. As descrições feitas pela autora deixavam Flávia extremamente curiosa, será que deitar-se com um homem era tão bom quanto o livro a fizera acreditar que seria?
Não que ela fosse capaz de fazer algo do tipo, mas os pensamentos de mãos masculinas explorando seu corpo a faziam incendiar. Observou as outras noviças que prestavam atenção na missa e pediu perdão a Deus novamente. Aquele não era o lugar e nem a hora para aqueles tipos de pensamentos. Definitivamente teria que se confessar e só esperava que a punição não fosse muito severa.
Depois da missa, quando a capela foi sendo esvaziada, Flávia se pegou indo em direção a Madre Superiora que conversava animadamente com o novo padre. Pediria desculpas por seu atraso e diria que estava arrependida. Em todos os seus anos vivendo no convento, havia aprendido que a mulher mais velha tendia a ser mais misericordiosa se ela se adiantasse aos seus sermões, ao invés de esperar que fosse punida. Esperou em um canto até que fosse notada pela dupla.
– Flávia! Venha cá! – A mulher mais velha gesticulou para que ela se aproximasse e assim o fez, mantendo seus olhos no chão – Este é o Padre Guilherme, ele acabou de voltar de uma temporada em Roma e veja só, ele toca o piano! – Flávia levantou os olhos para ver o homem à sua frente. Ele era alto e de perto se parecia muito com os heróis de seus amados livros, sentiu-se ruborizar debaixo do olhar dele – Já é a terceira vez que você se atrasa para a missa só esse mês, sabe que não posso deixar passar... Então sugeri ao Padre que você o ajude em sua adaptação por aqui, ele concorda comigo que é uma boa ideia.
– Ajudar? Como? – A moça perguntou curiosa.
– A Madre Superiora me disse que você é a cantora principal do coral, eu pretendo assumir a função de pianista deixada pelo Padre Daniel, pensamos que você poderia me ajudar com essa parte – Flávia sentiu seu corpo estremecer ao som da voz de Guilherme, mas não entendia bem o porquê, não é como se ela nunca tivesse conversado com um homem. Conviveu a vida inteira com Padre Daniel e era amiga dos coroinhas, Murilo e Gabriel, além de manter uma relação de cordialidade com Padre Marcelo que vez ou outra visitava o convento. Então, o que diabos estava acontecendo? – Além de, claro, me ajudar a preparar as missas das próximas semanas.
– Claro... Será uma honra, Padre Guilherme – A noviça sentiu a mão da Madre Superiora em seu ombro, tinha escapado dessa – O senhor pode sempre me encontrar no pátio ou ajudando na escola dominical.
– Por que não fazemos o seguinte? Você está dispensada de ajudar com a escola dominical nas próximas semanas, tenho certeza que o Padre vai precisar muito de você – Flávia não entendia ao certo o motivo da Madre Superiora estar insistindo tanto para que ela passasse tempo com o novo padre, mas sua confusão foi logo esclarecida quando a idosa acrescentou – Quem sabe passando tempo com um padre mais jovem, você não se apresse e faz seus votos também?
– Então está acordado, espero você em minha sala hoje às quatro da tarde, tudo bem? – Padre Guilherme disse e, antes que ela tivesse tempo de concordar, ele estava saindo da capela, acompanhado por uma Madre Superiora mais satisfeita do que nunca.
Flávia estava sozinha e decidiu que precisava rezar, talvez devesse começar sua penitência por conta própria, a voz grossa do padre ainda ressoando em seu peito enquanto ela se ajoelhava e começava um Pai Nosso.
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Lord Have Mercy - FLAGUI
Historical FictionÉ o ano de 1964 quando Padre Guilherme chega ao Convento de Nossa Senhora de Fátima, lá ele conhece a noviça Flávia que não sabe muito de seu passado e nem como foi parar ali. Juntos eles irão descobrir novos sentimentos, a doçura de um amor e o ard...