Confissões

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– Muito bom dia, irmãs! – Padre Guilherme sorriu animado quando entrou na sala de ensaio naquele dia e Flávia sentiu seu coração errar uma batida – Creio que já sabem que iremos fazer uma encenação das Bruxas de Salém na Semana Santa, não sabem?

Todo ano, na Semana Santa, o Convento realizava uma apresentação a fim de angariar doações para a sua manutenção. Era o segundo evento mais importante do calendário, perdendo apenas para o natal, quando o coral saía pela cidade entoando hinos sobre o nascimento de Cristo.

O Convento Nossa Senhora de Fátima era uma das ordens mais antigas do estado do Rio de Janeiro e ficava situado em uma cidadezinha de serra com pouco mais de dez mil habitantes. Apesar da história consolidada da instituição, nos últimos tempos as freiras estavam tendo certas dificuldades financeiras, as doações ficando cada vez mais escassas.

A apresentação das Bruxas de Salém, uma ideia trazida por Padre Guilherme nos primeiros dias em que chegou ali, serviria para atrair não só os residentes da cidade, mas também turistas da região, mas havia gerado um certo desconforto nas irmãs mais antigas.

Uma das freiras, uma mulher baixinha e simpática levantou a mão.

– Sim, irmã Rute?

– Padre, não creio que uma peça sobre bruxas seja a mais adequada para apresentarmos na Semana Santa! Além disso, sei que existem papéis masculinos e nenhuma de nós é homem! – A pergunta foi seguida por murmúrios das outras freiras em concordância.

– Ora, irmã! Mas é claro que os homens terão que ser interpretados por nós! E se quer saber, essa peça é muito boa! Não seja preconceituosa apenas pelo título, essas mulheres não eram bruxas, mas foram perseguidas e mortas assim como Jesus! – Flávia exclamou antes que o sacerdote tivesse a chance de responder e ergueu o queixo diante dos olhares de reprovação que recebeu – Digo desde já que quero interpretar o papel da Abigail!

Guilherme teve que disfarçar o sorriso que ameaçou tomar conta de seus lábios diante da animação da noviça. Ela seria realmente perfeita para o papel de Abigail, ele não tinha dúvidas. Havia escolhido a peça por se tratar de uma crítica ao autoritarismo, ainda que disfarçada como uma história sobre mulheres injustiçadas pela inquisição. Pensou também que seria uma boa maneira de mostrar aos estudantes que fossem ver a peça, que sua paróquia estava aberta aos revolucionários.

– Muito obrigado, Flávia, pelo interesse em ser nossa protagonista, – O padre sorriu de maneira educada antes de entregar as cópias do roteiro para cada uma das mulheres – Irmã Rute, eu entendo sua preocupação, mas é exatamente como Flávia falou: as mulheres retratadas nessa peça não eram bruxas, mas foram perseguidas e executadas sob acusações falsas. O título causa um certo choque, mas acho que será bom para atrair mais pessoas e, consequentemente, mais doações. – Ele se sentou no banco da frente da igreja, enquanto as irmãs se concentravam no altar; notou que Flávia passava os olhos pelo papel com um sorriso nos lábios, o que o fez sorrir inconscientemente – Vamos começar as audições? Se você quiser ser a Abigail, terá que conseguir o papel, Flávia...

– Eu também quero esse papel, Padre! – Martina, uma noviça mais nova do que Flávia, exclamou – Posso tentar também?

Ele fingiu não notar a irritação no rosto de Flávia diante da nova competição.

– Claro, Martina, todas devem participar e ainda não escolhemos a protagonista – Ele esticou as pernas longas e pegou a própria cópia do roteiro – Flávia, você poderia ler um pouco para nós? Uma vez que já conhece o texto.

Guilherme achou melhor não comentar que o único motivo para que a noviça conhecesse o texto era pelo fato dele a ter emprestado sua cópia do livro algumas semanas antes. Também não era prudente que as outras soubessem sobre as sessões de aulas de literatura que os dois tinham escondidos quase todas as manhãs em sua sala.

Lord Have Mercy - FLAGUIOnde histórias criam vida. Descubra agora