O que aconteceu foi que sábado, na festa da Sakura, eu esqueci como eu era e fui me olhar no espelho, depois não me reconheci e fui no espelho checar, mas será que sou eu mesmo, veio de novo a dúvida, fui verificar e depois deu branco e precisei muito me ver, e quantas vezes esse menino vai ao banheiro, pensaram. Eu me olhei no espelho e aquele rosto não era meu. Eu quis perguntar pra professora de literatura, perguntar pra ela por que isso acontecia, a professora estava na festa, ela é madrinha da Sakura. Eu fui perguntar por que às vezes eu me olhava no espelho e não me reconhecia, aquele rosto não era meu, eu perguntei ela falou:
- Não sei.
Na festa tiravam fotos, todo mundo tira foto, não pede licença, tira posta marca, comenta, curte.
A gente se acha uma coisa, na foto aparece outra. E a voz.
Uma vez ouvi minha voz gravada.
Juro que não era eu.
Na festa da Sakura eu me olhava no espelho e pensava, olhava e pensava se a gente ficar cego o mundo deixa de existir, mexia a cabeça e se a gente ficar surdo o mundo deixa de existir, arrumava o cabelo e se a gente ficar cego e surdo e perder o tato, passava batom, o mundo deixa de existir, checava os dentes e se a gente morrer o mundo deixa de existir, fechava os olhos e se a árvore cair sozinha na floresta e ninguém souber, a árvore existe?
Acho que a árvore cai e fica ali caída ué. Ninguém nem liga.
Filosofia. Lição de casa.
Sai do banheiro e aproveitei pra ver a casa. O quarto da filha, banheiro, o quarto de hóspedes, banheiro, o lavabo, a suíte do casal. Mania que o povo tem de privada. Uma vez fui na casa de um amigo e contei seis privadas só no andar de cima.
A casa da Sakura tinha escadas e eu lembrei um dia eu era criança e o menino disse não quero mais ser seu namorado e eu nem sabia que a gente estava namorando e eu pensei então é isso que é levar um fora e eu pensei ninguém sabe e eu pensei então não existe.
Espelho do quarto, espelho da suíte, tinha espelho no corredor, na sala de ginástica, eu fiquei me equilibrando na bola de pilates da mãe da Sakura. Ela faz parto natural humanizado caseiro, eu aprendi, tem nome, doula. Nascimento humanizado. A bola é enorme, a gente escorrega e deita nela e alonga as costas e eu queria ser iogue.
No quarto da Sakura eu lembrei eu tinha ido na casa dele e a gente tomou banho e dormiu junto porque a mãe deixou e passou Pinóquio na tevê e ele foi meu primeiro namorado. Pior que Pinóquio só desenhos japoneses, os olhos grandes da menina órfã em lágrimas-gelatina. Eu não gosto de desenhos japoneses. Também não gosto do Pinóquio.
Eu acho que a gente devia poder mentir.
Naquela festa toda hora me dava um desespero pra me olhar no espelho, eu não sabia se a maquiagem estava borrada eu não sabia se eu estava gordo eu não sabia como era o meu rosto, Fui pra biblioteca. Os pais da Sakura são intelectuais, têm biblioteca em casa. Talvez houvesse espelho na biblioteca.
Eu tinha ido na casa dele e a gente tinha tomado banho junto e dormido junto porque a mãe deixou e passou Pinóquio na tevê.
Enquanto explorava a casa, fechava um olho, depois abria e fechava o outro.
Como a gente sabe quando está namorando?
E como a gente sabe se o que a gente vê é mesmo o que todo mundo vê?
(Ele foi meu primeiro namorado.)
Não depende, no fundo, de onde a gente está?
(E único até agora.)
Sei lá.
Só sei que
passarinho que dorme com morcego amanhece de cabeça pra baixo.
653 palavras.
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Fuga
Teen FictionDe repente, no meio de uma festa, Naruto decide começar uma viagem arriscada. O destino é incerto: pode ser uma cidade de nome bonito, como Abadia dos Dourados ou Mira Estrela, ou um país de lingua estranha, como Valáquia ou Quirguistão. O motivo ta...