Capítulo 1 - Mais uma tragada

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- Fuma pra mim?

- Como é?

- Fuma pra mim!

E o que antes era um pedido, virou uma ordem. É o que acontece quando um ponto de interrogação é substituído drasticamente por uma exclamação e o tom de voz passa de subordinado para autoritário em questão de segundos.

- Você sabe que eu tô tentando parar, inclusive porque você reclamava que...

- Eu sei... só fuma. Eu não tô te pedindo que me ame, mas que acenda um cigarro.

Lena levanta da cama, caminha trôpega até a mesinha ao lado da janela, abre a bolsa, pega o maço de cigarros de filtro amarelo, coloca um na boca e se põe a praticar um exercício extremamente complexo: encontrar o isqueiro dentro da bolsa. Não acha. Por fim, vira e revira a bolsa, derrubando todo o conteúdo em cima da mesa, espalhando maquiagens, chaves, moedas, absorventes, papéis de bala, comprovantes bancários... e lá está o isqueiro, no meio de toda aquela bagunça que ela não parece fazer a mínima questão de arrumar.

Senta-se na ponta da cadeira, com o dorso ereto, o quadril empinado, e acende aquele cigarro barato que ele só não detesta mais porque adora assisti-la fumar depois que transam. Um ritual que ele aprecia tanto quanto o ato sexual em si.

Ela fica ali, nua, muda, na penumbra do quarto, contraluz, fumando sem sequer olhar na direção dele. Fingindo indiferença, com a consciência plena da sensualidade de cada movimento minuciosamente observado, de cada tragada, da fumaça que assopra lentamente.

Ele não tem cinzeiro em casa pelo mesmo motivo que não fuma: não encontra utilidade. As cinzas do cigarro caem no chão e ela não se importa.

- Foda-se o teu tapete branco.

- Por que você mudou o cabelo outra vez?

- Por que, diabos, você tem um tapete branco no seu quarto?

- Pelo mesmo motivo que você pinta o cabelo.

- Se isso te irrita tanto, por que você me pediu que viesse?

- Eu não pedi que você viesse com as unhas e os cabelos pintados de vermelho.

- Mas me pediu pra fumar pra você...

Ela descruza as pernas, apoia o cigarro na ponta da mesa, bem na direção do tapete. A fumaça sobe e escapa pela janela, junto com os pensamentos dele, que acompanham o caminho da fumaça enquanto ela o encara, ao passo que ele devolve o olhar com outra pergunta:

- Por que você veio?

Ela riu.

- Pra ter certeza de que você se arrependeu, pra te ver agonizar silenciosamente, bem assim, do jeitinho que você tá fazendo agora...

- Sádica.

- E quanto a você? Por que me chamou?

- Pra lembrar...

Com o tempo, a memória falha. E como se não bastasse falhar, sabota. Ele só lembrava do sorriso dela, da pele lisa, do corpo lindo, do jeito irreverente e falador, das noites em claro fazendo amor (ou das noites de trepadas alucinantes, a depender do seu humor). Precisava lembrar dos vícios, ver as vísceras dos defeitos de novo, bem de perto, pra ter certeza de que ela não era mulher pra ele, com aquelas roupas desleixadas, o sutiã que nunca combinava com a calcinha, o cabelo multicolorido, que ela mudava o tempo inteiro como quem muda de canal quando tem um controle remoto na mão, as unhas mal pintadas de vermelho aberto, roídas nas pontas, o cigarro fedorento que ela fuma com um charme quase insultante, deixando a marca do batom vermelho aberto de péssimo gosto.

Nesta noite, o cigarro duraria a eternidade do silêncio, com diálogos espaçados. E ela ainda haveria de fumar outros tantos pra ele lembrar do que precisava esquecer.

Isso se ela não o tragar antes, entre um cigarro e outro.

Tapete BrancoOnde histórias criam vida. Descubra agora