Zorra

22 5 0
                                    


☼ Além do Sol | Capítulo 3

  Terça-Feira:

    Decidi não voltar à escola por um bom tempo, até todos esquecerem da minha existência. Naquela manhã eu me levantei bem cedo, mas não o suficiente para me despedir da Lúcia, antes dela ir trabalhar.
    Andei sorrateiramente pela casa até me dar conta de que estava sozinho. Encontrei um bilhete da minha mãe grudado na geladeira, dizendo que voltaria só ao anoitecer, mas não contou de onde. Eu havia pego um trauma de bilhetinhos.
   Depois daquele incidente com a Joice, evitei ao máximo ter contato com ela até o final do dia. Meus amigos se decepcionaram tanto comigo, porém eu não os julgo. Passei o maior vexame na frente da garota dos meus sonhos e de toda a escola.
   Tentei não ficar pensando naquilo, ou então ia acumular ainda mais ódio de mim mesmo. Bom, já que a casa era só minha, estralei os dedos e resolvi transformar a sala em meu palco principal. Vestindo apenas uma cueca branca e um par meias, fui curtir a minha liberdade.
   Comecei ouvindo músicas leves e serenas, que só iam aumentando de ritmo conforme eu mudava. Não demorou muito para eu estar curtindo um rock pesado, enquanto Yoda corria pela casa toda, latindo sem parar.
    Fechei as cortinas para evitar os olhares curiosos da vizinhança, vulgo dona Telma. Senti um medo real dela acabar ligando para a polícia em algum momento, então diminuí o volume. Apesar do som alto, acho que aquele ambiente nunca esteve tão calmo.
   Nada de brigas, discussões ou gente chata me enchendo a paciência... apenas o Yoda e eu curtindo um dia entre amigos em paz. Resolvi preparar um lanche.

—  Que barulheira é essa!? — disse meu pai ao abrir a porta da sala. Em seguida, desligou o aparelho.

—  Pai? — pensei sozinho enquanto preparava um cachorro quente na cozinha.


    Yoda não moveu um músculo. Se fosse um assaltante eu poderia estar morto agora, já que ele não se concentra em mais nada quando há comida por perto.
   Lhe dei um pedaço de salsicha para que ele me desse sossego. Seria canibalismo um cão salsicha comer salsicha?

—  Cadê a sua mãe? — indagou, guardando uma cerveja na geladeira.

—  Eu não sei.

—  Não sabe de nada em, moleque? — me encarou.

—  Ela não avisou ninguém.

—  O que você pensa que tá fazendo? Vai vestir uma roupa.

—  Estou indo fazer isso — passei reto com meu prato e subi as escadas.

    Naquele momento eu me imaginei a cinco passos de pular pela janela e ver no que dava. Uma morte horrível devia ser, mas ainda assim, melhor do que passar um dia inteiro com o meu pai em casa.
    Ele tinha cheiro forte de cigarro, era rude como um pirata bêbado e mal falava comigo. Me pergunto desde quando esse homem se tornou tão frio e obtuso.
    Eu ainda não tinha celular, pois meus pais faziam questão de esfregar na minha cara que era impossível me darem um, pela ausência de dinheiro. Às vezes eu mexia escondido no da Maria Lúcia, era todo rosa e brilhante.
    Uns tempos atrás, descobri algumas conversas dela com aquele tal de Rafael, o menino da foto que ela escondia na gaveta. Pensei que nunca havia visto aquele garoto, mas me enganei bonito.
    Analisando as fotos do aniversário de quinze anos da Lúcia, lá estava ele, meio tímido e escondido junto aos outros jovens. Não reparei nele, mas lembro desse dia como se fosse ontem.
    Minha tia Clarice, irmã da minha mãe, havia se casado recentemente com um rapaz bem mais novo que ela. Eu ainda era meio inocente, mas notei alguns olhares da minha mãe para aquele moço de uns vinte e um anos no máximo. Realmente era bonito, me imaginei crescendo igual a ele.
   Falando nela, estava sorridente e carinhosa naquela festa. Poucas vezes tinha lhe visto daquele jeito, já que hoje em dia ela é tão fechada e indiferente. A última vez que conversamos bastante foi quando conseguiu me levar para a igreja. Mal prestei atenção, fiquei meio assustado com tantas imagens medonhas à minha volta, que Deus me perdoe.
    As poucas vezes que saía com o meu pai, era quando ele me levava para barbearia, onde os homens diziam muitas coisas inadequadas na presença de um garoto. Mas aprendi bastante sobre futebol, diversas piadas sobre sogras e de casamentos serem ruins.
    Dentro do quarto, Yoda ia comendo as batatas palha que caíam no chão, enquanto eu andava de um lado para o outro. Minutos depois, tive uma grande ideia e fui atrás do telefone de casa, onde poderia fazer uma ligação importante.

ᥲᥣᥱ́꧑ 𝚍᥆ ᥉᥆ᥣOnde histórias criam vida. Descubra agora