O embarque

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     As nuvens eram cinzas, como fumaça poluindo o céu, era um dia triste, sem vida, o que não combinava com a euforia que escorria pela pele energizada de Celine.
    Ela acordou agitada naquela manhã, com o coração acelerado e o corpo tremendo, como se estivesse com frio, mas era só sua falta de saúde mental se mostrando presente.
    E para sua sorte, o Uber parecia andar mais lentamente com a quantidade de bagagens em seu porta malas. Seria engraçado se Celine não achasse completamente trágico, a detetive definitivamente não queria ter que tentar chamar outro carro em um dia com aquele, era como se toda a comunidade do aplicativo tivesse se reunido para não aceitar sua corrida.
    E com certeza era por isso — e não pela noite mal dormida — que ela estava atrasada para sua chegada ao aeroporto.
    Mas, em sua defesa, na noite anterior Ethan saíra tarde de sua casa, depois de uma maratona longa do Reality Show e uma avalanche de questões sobre sua missão.
    E, para não se sentir culpada, ela fez uma nota mental de que culpar Ethan não era errado, afinal, ela não estava fazendo uma reclamação sobre sua companhia.
    Ela amava Ethan.
    Em um sentido nada romântico, claro.
    Ok, eles se beijaram uma vez, mas foi tudo 100% culpa do alto índice alcoólico em seus corpos.
    — Senhora? — uma voz a trouxe para a realidade. — Senhora, chegamos.
    Céus, ela precisava se concentrar.
    Seu estômago se revirou, e ela passou as mãos pela roupa antes de deixar o carro, indo até o porta malas e arrastando suas bagagens para fora.
    Ela poderia desmaiar a qualquer instante.
    — Muito obrigada! Tenha um bom dia e um bom trabalho. — Ela falou para o motorista, mais agradecida por não ter sido sequestrada e morta, do que pela viagem em si.
    Celine sempre se questionava o motivo de pagar pela chance de morrer. Era basicamente isso que fazia toda vez que pegava o Uber.
    Mas ela não tinha como ir até o aeroporto de carro, não gastaria para o deixar parado ali, e se convidasse Ethan, ou, urgh, sua mãe, chamaria atenção desnecessária.
    A bagagem pesou em suas mãos, ela carregava duas malas grandes — com roupas demais para serem arrastadas com tranquilidade pelo aeroporto — uma pequena mala de mão com itens pessoais e de extrema necessidade e - como se já não carregasse o bastante - um travesseiro de viagem repousava em seu pescoço.
    O aeroporto não estava lotado, longe disso.
    "Graças a Deus", ela pensou.
    Celine odiava lugares lotados ou tumultuados, isso a fazia entrar em pânico. Não é uma experiência que gostaria de ter logo naquele dia.
    Ou em qualquer dia.
    O número do seu voo já estava anotado em sua mente desde o segundo em que recebeu a passagem, era AT 1998 e ela esperava não ter problemas para embarcar.
    Já estava atrasada o bastante, não precisava de contratempos maiores.
    Logo ao passar pelas portas automáticas, Celine encontrou - para sua extrema felicidade - um mapa na parede à sua direita.
    Perfeito.
    E foi nesse momento que ela usou todo o seu senso de direção, quase inexistente, para tentar se guiar pelo aeroporto através daquele pedaço de papel enorme.
    Para chegar ao check-in, ela só precisava seguir reto pelo caminho da entrada.
    Fácil, rápido.
    Algumas daquelas pessoas que arrastavam mala para dentro das portas automáticas, com toda a certeza, também estavam indo para o check-in.
    Qualquer coisa é só segui-las, não tinha como se perder.
    Foi o que ela pensou no exato momento em que se virou e bateu de cara em uma barreira.
    Digo, em uma pessoa, claro.
    Sentindo seus ombros sendo segurados em um impulso do desconhecido para obrigá-la a ir um pouco para trás.
    Ou conferir se ela estava bem, ela não sabia e acreditava fielmente na primeira opção.
    — Ai, merda! — ela murmurou, colocando a mão no rosto para garantir que não tinha machucado nada além de sua dignidade. — Me desculpe, não te vi.
    Ela massageou a testa uma última vez antes de voltar seu olhar para cima.
    E puta merda, foi tudo o que ela foi capaz de pensar.
    Tantas palavras poderiam ter sido pensadas, mas ela escolheu justo essas.
    — Tudo bem, a culpa foi minha. — ele disse, com um divertimento rouco na voz. — Eu não deveria parar atrás de desconhecidas desatentas.
    Ela estava em um livro? Só poderia estar em um e tinha certeza que estava nos primeiros capítulos.
    Porque em seu dia a dia ela não iria bater contra alguém bonito, não tão bonito e atraente assim, no máximo com um velho rabugento.
    Ela soltou um riso nervoso antes de soltar um impulsivo "ok, me desculpe mesmo assim", baixinho e agarrar  a alça  de sua mala com mais força.
    — Eu sou péssima com direções, estava tentando me localizar. — ela informou, sem saber o motivo exato.
    O desconhecido concordou lentamente, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo e, de certo modo, era.
    Contrangida em voltar sua atenção para o mapa, Celine olhou para a porta automática, vendo uma família entrar, uma menininha agarrava a mão do pai o puxando, enquanto dois meninos de, no máximo, 10 anos estavam enfiados em seus smartphones, gritando informações um para o outro.
    E pouco atrás, um idoso com uma expressão perdida entrou arrastando uma mala e com um buquê de flores em suas mãos, ele parecida perdido e nervoso. Para onde será que iria?
    — Check-in? — o desconhecido falou, atraindo sua atenção e apontando para mala de Celine, ele repetiu: — Vai para o check-in?
    Ela acenou, não sabendo se isso era um ato muito responsável, poderia jurar que não.
    — Quer ajuda para chegar ?
    Celine o encarou com as sobrancelhas franzidas, negando rapidamente antes de dar um passo para trás.
    Credo, ele poderia ser um maluco pervertido ou um serial killer. Ou ela apenas estava assistindo muitos documentários criminais.
    Ou ainda, ela apenas não confiava em homens, é, possivelmente essa opção é a correta.
    — Não, não. Eu sei ir... — mentiu. — Me desculpe novamente, tenha um bom dia, senhor.
    Ela desejou algo bom para que, se ele fosse um maluco, achasse ela simpática demais para raptar e matar.
    E com um sorriso de conforto para ele, ela segurou suas malas e se virou, seguindo o rumo para onde, ela torcia, ser o check-in.
    Em consequência a interação.
    Não só suas mãos, mas seu corpo inteiro tremia, como se recebesse contínuas ondas de calafrios, enquanto seu coração procurava uma maneira de sair pela boca.
    Esse era o resultado de falar com estranhos, ou com qualquer pessoa que pouco conhecia pessoalmente.
    E essa reação, era uma pequena amostra do seu inferno pessoal.
    Celine precisaria tentar controlar isso para não correr riscos nessa missão, não podia estragar tudo por causa da sua ansiedade.
    Tentando distrair a mente das reações de seu corpo, ela conferiu o relógio em seu pulso assim que ele vibrou ao marcar 5 horas e 55 minutos, o que a fez bufar e acelerar o passo, seu voo partiria às 7 horas da manhã e ela tinha certeza que não deveria ter chego tão em cima.
    A fila de check-in, milagrosamente, não estava muito cheia.
    Três guichês eram reservados para a companhia área onde viajaria, mas apenas um funcionava, enquanto os outros dois continham uma grande placa escrito "FECHADO".
    Uma moça jovem, que usava um hijab verde para cobrir os seus cabelos e com roupas que brincavam entre o conforto e o estilo, parecia animada ao dar seus dados para a balconista, sua mala já estava em cima da esteira de pesagem, pronta para ser despachada, enquanto seus dedos batucavam o balcão de atendimento e um sorriso nervoso se expandia por seus lábios.
    Um pouco atrás, ocupando o primeiro lugar na fila para o atendimento, a família que vira anteriormente falava alto uns com os outros, as crianças estavam agitadas e os pais pareciam desesperados.
    Mesmo não querendo admitir, Celine tinha certeza que eles estavam questionando muitas decisões nesse momento.
    Pouco atrás, uma jovem com, no máximo, 18 anos, falava ao celular, ela usava só roupas pretas, sem vida, e não parecia muito feliz em estar ali.
    E no último lugar da fila, uma senhora idosa encarava o lugar ao redor, ela era como uma calmaria em meio ao caos, um xale amarelo cobria seus ombros enquanto ela segurava com força a alça de uma mala rosa com rodas.
    Com um suspiro audível, Celine arrastou suas bagagens para a fila, já sentindo a dor de cabeça que as vozes altas e agudas das crianças lhe causariam.
    — Namorado? — uma voz simpática a atingiu e ela encarou a doce idosa enquanto se aproximava mais.
    — Oi? — suas sobrancelhas franziram ao questionar.
    — Vai visitar o namorado? É o que os jovens fazem hoje em dia — ela não parecia estar querendo ser rude ao questionar, apenas era curiosa. — Minha netinha uma vez me contou de um tal de... Webnamoro, eu não sei quem ele é, mas parece simpático.
    Celine deu uma breve arregalada em seus olhos, quase imperceptível, jurando que sua "netinha" já não deveria merecer o diminutivo no chamamento.
    Ela não sabia como responder àquilo, então decidiu ignorar a última parte.
    — Oh, não! Céus, não! Sem namorados, apenas estudos. — ela respondeu, tentando ser sutil e delicada com as suas palavras.
    — Ah! Certo, certo — ela parecia ter terminado com as perguntas, mas não. — Qual curso?
    Definitivamente, agora Celine hesitou em abrir a boca.
    Normalmente, idosos não ficavam muito felizes ao ouvir que alguém iria cursar "dança", em 90% dos casos iriam questionar o motivo dela não querer medicina, ou algo como direito.
    Como se o mundo precisasse de uma médica como ela, Celine, com toda certeza do universo, seria capaz de esquecer o bisturi dentro de alguém.
    Ou faria algum outro absurdo do tipo.
    E ela não queria correr o risco de entrar em aviõezinhos que podem cair, ou encontrar uma bomba dentro de alguém que pode explodir em suas mãos.
    Não, obrigada.
    E direito? Ela possivelmente choraria no tribunal se alguém gritasse ou falasse alto com ela.
    — Hummm, bem, é... Dança. — ela respondeu, hesitante e sem confiança alguma em suas palavras
    Uma espécie de brilho passou pelo olhar da doce idosa e um surpreendente sorriso tomou conta de seus lábios.
    — Eu esperava uma resposta entediante, como direito ou medicina — ela riu alto, encarando Celine com uma espécie de admiração. — Minha jovem, hoje em dia é difícil encontrar alguém que escolha seguir seus verdadeiros sonhos.
    A jovem não sabia o verdadeiro motivo, mas algo naquela idosa a fazia se sentir confortável, era fácil de conversar sem que suas mãos tremessem, algo a fazia simpatizar com ela.
    Talvez fosse a dor escondida no lugar mais profundo de seus olhos, ou o peso que carregava em suas costas.
    — E a senhora, para onde vai? — ela questionou, realmente querendo ouvir a resposta.
    — Oh meu Deus, senhora não, parece que tenho 70 anos. — ela suspirou, a feição séria como pedra. — Eu tenho 69, por favor, me chame de Beth.
    Celine não conseguiu segurar a risada que escapou, ela definitivamente gostaria de ter uma amiga como Beth.
    — Certo... Hum, Beth... Para onde vai viajar? — ela consertou sua fala.
    Enquanto Celine aguardava uma resposta, seu olhar desviou para a fila que andava depressa e, para seu susto, ela percebeu que Beth já era a próxima a ser atendida.
    O tempo havia passado rápido, ela nem percebeu o silêncio que se instaurou na ausência da família agitada. Era maravilhoso.
    — West Ran. Irei visitar meu netinho. — ela falou, genuinamente feliz — Ele cursa química, mesmo que eu diga, todas as vezes que ele deveria seguir seu sonho de fazer literatura.
    Mesmo com a onda de rancor em seu tom, Beth parecia orgulhosa do neto que, mais uma vez, ela não deveria usar do diminutivo para se referir.
    O som do monitor com grandes letras vermelhas apitou, indicando que a idosa deveria se encaminhar até o balcão, então Celine não teve reação além de apontar para o número e ver Beth sorrir radiante para ela antes de seguir sem dizer mais palavras.
    West Ran... Pelo menos ela não era a única com esse destino.
    Céus, tomara que não seja uma daquelas cidades com tons azuis e tristes igual dos filmes, ela precisava de cor e, com certeza, deveria ter estudado mais sobre o lugar para onde iria.
    Burra.
    Como alguém vai fazer faculdade em uma cidade que não conhece nada?
    Só ela, pelo visto.
    Certo, ela poderia estar sem rumo, perdida e levemente arrependida diante de suas decisões, mas ela tinha certeza de uma única coisa.
    Ela estava muito, muito ferrada.
    O monitor acendeu.
    Ela viu a senhora partir com apenas uma bolsa de mão, e seus pés a obrigaram a ir até o balcão.
    Não tinha mais volta.
    — Boa tarde! Passaporte, documento e passagem, por favor.
    Com um remexer breve no bolso de sua bagagem de mão, ela retirou os documentos, sorrindo nervosamente para a atendente ao alcançá-los.
    Sua barriga estava se revirando em todas as direções existentes, como se gorilas estivessem brigando lá dentro.
    — Pode colocar sua mala na esteira, senhorita... Casey Parker.

Enquanto o Amor DurarOnde histórias criam vida. Descubra agora