Nova identidade

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"Mais um dia e ela se jogaria do prédio."
ㅤㅤ Isso era tudo o que se passava pela cabeça de Celine, o andar onde estava trabalhando se lotava aos poucos, o sol já nascia lá fora e sua cabeça explodiria ali dentro.
ㅤ ㅤ A dor era dilacerante, como se alguém estivesse cutucando seu cérebro com uma agulha afiada.
ㅤㅤ Em sua frente, sobre a mesa que trabalhava, havia pilhas e mais pilhas de formulários e relatórios sobre o caso que lhe fora destinado.
ㅤ ㅤ Era um caso perdido, ela sabia disso e o delegado também, por isso lhe fora dado.
ㅤㅤ Era como se ele desejasse que ela fracassasse, como se sempre esperasse por aquilo.
ㅤㅤ— Ainda aqui? — a voz de Ethan soou e ela se virou na cadeira, vendo seu amigo tomando o lugar na mesa atrás de si, que tinha bem menos papelada que a sua.
ㅤㅤ— Para a minha felicidade, sim. — ela ironizou, o cansaço presente em cada palavra — Tu chegou cedo hoje, caiu da cama?
ㅤㅤ— . Mais ou menos isso. — a cadeira arranhou o chão quando ele a arrastou e se sentou, começando a organizar os poucos papéis presentes sobre a mesa em sua frente.
ㅤ ㅤ Ao redor deles, murmúrios de "bom dias" e "olás" chegavam em seus ouvidos. Na esquerda de Celine, a mesa que estava em horizontal a ela, tinha um homem de meia idade se sentando, resmungando sobre inutilidades da vida, os poucos fios de cabelo branco em sua cabeça estavam bagunçados, mas ninguém prestava real atenção ao velho rabugento, da mesma forma que poucos notaram quando o elevador soou um "plim" em um sinal para a chegada ao andar número 7 e um homem saiu de dentro da caixa metálica, beirando os 60 anos, com ar soberbo, como se todos estivessem o encarando, mas ninguém estava.
ㅤㅤ— Argh. Olha quem chegou. — ou fingiam não estar. O olhar de Celine se direcionou ao elevador depois do resmungo de Ethan. — Ele não deveria chegar só às 10 horas?
ㅤㅤ— O que ele faz aqui? — ela questionou incrédula.
ㅤㅤ— Ele é o delegado, oras. O que será que ele faz na delegacia? — ironizou o garoto, se levantando imediatamente ao perceber a aproximação rápida do velho homem. — Senhor.
ㅤㅤ Demonstrou respeito, enquanto Celine repetia os atos do amigo e percebia a permanência dos olhos escuros do delegado sobre si, o que fizera com que seu corpo inteiro tremesse.
ㅤ ㅤ Ela se preparou para qualquer humilhação que viesse a seguir, mas, para sua surpresa, nenhuma veio.
ㅤㅤ— Detetive Quinlan. — ele falou, autoritário e firme, mas sem ironia ou desgosto — Poderia me acompanhar até a minha sala?
ㅤㅤ Os olhos da jovem se arregalaram por um instante breve demais para ser notado, sem saber ao certo o que deveria responder.
ㅤㅤ Seu transe não durou mais do que um segundo, como se sua alma tivesse - brevemente - voado para longe.
ㅤㅤ— Claro, Senhor. — para sua sorte, suas palavras saíram firmes, sua coluna enrijeceu e ela seguiu o delegado, mas não sem antes dar uma rápida encarada em direção ao seu amigo, o outro entendendo menos que ela.
ㅤㅤ Os dois pareciam que tinham visto um fantasma diante de seus olhos.

ㅤㅤ A sala do delegado era a maior do setor, grande e feita com paredes do mais impecável e caro vidro, tal que proporcionava não só a visão das mesas de onde a pouco vieram, mas também da rua, os prédios altos enfeitando o horizonte e o céu azul, que clareava mais a cada hora.
ㅤㅤ Era lindo, ela admitia isso.
ㅤㅤ Se ele não tivesse fechado as persianas no mesmo instante em que ambos pisaram no ambiente, Celine teria admirado mais.
ㅤㅤ O delegado voltou a falar após a segunda verificação de que as persianas estavam todas bem fechadas.
ㅤ ㅤ Mas não sem antes dar uma aula sobre como andar confiante até a sua mesa, sempre com a cara fechada como um túmulo, não revelando nada de seus pensamentos, a cadeira arranhou o chão ao ser arrastada para trás, dando o espaço devido para que o homem se sentasse.
ㅤㅤ E ela logo tratou de ocupar a cadeira em frente a grande mesa, mesmo não sabendo se deveria.
ㅤㅤ— Me desculpe pelas persianas, é necessário o máximo de privacidade para a nossa conversa. — ele engoliu em seco, arranhando a garganta antes de continuar. — Precisamos falar do caso número 82680789AD.
ㅤ ㅤ Ela endureceu todo o seu corpo e podia jurar que começou a - instantaneamente - suar frio, prevendo o que viria.
ㅤㅤ A bronca que levaria por tamanha incompetência.
ㅤㅤ— Senhor, eu sei que não tivemos avanços ainda, mas eu prometo que estou dando o meu máximo nele e logo terá um... — ele a interrompeu, não dando chances para que ela se explicasse.
ㅤㅤ— Não, não é nada disso. Se acalme, senhorita. — ela relaxou, pelo visto ela não havia previsto o que aconteceria nessa sala. E isso a assustava — É sobre a sua infiltração na Universidade Federal de West Ran.
ㅤㅤ O choque foi maior do que o esperado, um sorriso teimou em se curvar no canto dos lábios de Celine, ela não deveria ficar tão animada com aquilo, mas estava.
ㅤㅤ"Céus, como havia esquecido a infiltração?"
ㅤ ㅤ Era como se tivesse chegado ao topo do Monte Everest, era um sonho e um risco.
ㅤ ㅤ Mas ela gostava de focar só no fato de ser um sonho.
ㅤㅤ— Ah, sim! Já recebeu a resposta do juíz? — Celine lembrara que no dia anterior havia recebido um e-mail a informando sobre a representação do delegado ao juíz, tal que só tinha 24 horas para dar sua resposta, entre outras burocracias.
ㅤㅤ Enviar um agente infiltrado era o último recurso de qualquer caso grande, ou seja, ela não podia estragar tudo.
ㅤㅤ Estragar tudo e fazer a missão ir por água abaixo não estava em pauta.
ㅤㅤ— Ele aprovou a missão. Normalmente precisaríamos de alguns meses para lhe enviar, mas não temos todo esse tempo. — a jovem acenou, não conseguindo formar frase alguma. ㅤㅤ— Você irá em dois dias.
ㅤㅤ— DOIS DIAS? — ela falou, bem mais alto que o esperado, então repetiu, só que dessa vez, mais devagar e calmamente. — Sinto muito, mas dois dias? Não é... Muito pouco tempo? Eu não sei nada sobre...
ㅤㅤ O delegado negou rapidamente, a interrompendo ao retirar uma pasta da primeira gaveta de sua mesa, tal que ele folheou brevemente antes da mesma ser estendida para Celine.
ㅤㅤ— Está tudo aqui, nome, idade, como é a sua família, o curso que cursará... Tudo bem aí. Estamos a meses te preparando para esse momento e conseguimos um bom "personagem" para você. Humm... É... Tenho certeza que não deixamos brechas, você agora se chama Casey Parker e estará cursando Dança, como combinado previamente.
ㅤ ㅤ Os olhos de Celine corriam pela página com todas as informações de sua nova vida, de sua nova "eu".
ㅤㅤ Ela cursaria dança... Céus, talvez isso seria mais fácil do que o esperado.
Celine sonhava em cursar dança desde que se lembrava ser possível, quando criança, a jovem arrastava os móveis do seu quarto para arranjar espaço o bastante para suas piruetas e danças contemporâneas. Ela lembrava da sensação de liberdade que isso a dava, em como os seus passos deslizavam pelo chão e o seu corpo ficava leve como pluma.
ㅤㅤ Até o fatídico dia em que o seu sonho passou a ser um lixo e precisou ser jogado fora.
ㅤ ㅤ Mas mesmo com o entusiasmo repentino, ainda era muita coisa para decorar em dois dias.
ㅤㅤ— É muita coisa, digo, e se eu esquecer o nome da minha mãe, ou o emprego do meu pai, sabia que ter dito que ele saiu para fumar e nunca mais voltou, seria muito mais fácil? — ela disparou, deslizando repetidas vezes seus olhos pela folha.
ㅤㅤ O delegado surpreendentemente riu, mas o som não durou muito antes dele a encarar com seriedade.
ㅤㅤ— Se quiser que eu dê a tarefa para outro...
ㅤㅤ— NÃO! — ela nem pensou ao gritar — Digo... Não, senhor, claro que não, eu consigo.
ㅤㅤ— Eu sei que você consegue — o delegado continuou — Estamos contando com isso.
ㅤㅤCasey Parker.
ㅤㅤCerto, ela sabia que podia fazer isso, ela seria Casey Parker.
ㅤㅤ— Não irei decepcionar.

ㅤㅤEla o havia decepcionado

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ㅤㅤEla o havia decepcionado.
ㅤㅤE não havia se passado nem 1 hora desde a conversa.
ㅤㅤCeline agora estava virada em direção a mesa de seu melhor amigo, Ethan, prestes a contar tudo sobre a infiltração para ele, quando seus pensamentos a impediram.
ㅤㅤEla não podia envolvê-lo nisso.
ㅤㅤ— Orion me chamou até a sala dele hoje — ela sussurrou, se esquivando dos ouvidos fofoqueiros
ㅤㅤEthan direcionou seu olhar por um segundo em direção a amiga, antes de retomar a atenção ao computador.
ㅤㅤ— Eu estava bem aqui quando aconteceu, então é, eu sei — ele apoiou suas costas no encosto da cadeira, o computador ainda não havia logado. — Sabe que ele odeia enrolação nos casos.
ㅤㅤ— Argh... — ela bufou um palavrão baixinho, voltando a encarar a papelada sobre a madeira da mesa. — Ele sabe que não seria fácil, eu não tenho nada aqui, mas por incrível que pareça, não era sobre isso.
ㅤㅤEthan suspirou, como se tivesse desistido de continuar encarando a luz azul acesa em seu computador e, finalmente, a deu o prazer de sua atenção.
ㅤㅤ— Ok, desembucha — ele se deu por derrotado.
ㅤㅤAté os pombos na janela perceberam o suspiro alto que Celine deu, ela se lembrou, pela segunda vez nos últimos 5 minutos, que não podia contar ao seu amigo, nem para qualquer pessoa, ou será que podia? Céus, ela não sabia.
ㅤㅤCerto, ela sabia o que fazer para contornar a situação.
ㅤㅤ— Lembra que, há duas semanas atrás, um homem foi preso... — ela começou, o tom baixo enquanto ela aproximava a cadeira da própria mesa, remexendo na papelada sobre o móvel e, novamente, girando o seu assento em direção a mesa de Ethan, colocando alguns relatórios sobre ela. — August Richards, 27 anos, em posse de drogas, tudo que diz é que ele havia conseguido na universidade federal de West Ran, há mais de 100 quilômetros daqui.
ㅤㅤ— Por que ele só diria isso?
ㅤㅤA jovem soltou uma risada seca, gesticulando com suas mãos em direção aos relatórios como se estivesse dizendo: "exato, por que?".
ㅤㅤ— Rá rá. Aí que está Ethan, por que ele diria isso? De duas, uma. Ele está mentindo, apenas querendo nos levar pra longe daqui, ou está falando a verdade, sabendo que não iríamos atrás, por ser estúpido ele ter conseguindo andar tantos quilometros com tanta droga no carro.
ㅤㅤ— Ou ele quer incriminar alguém.
ㅤㅤCeline acenou e com um suspiro frustrado, ela jogou a cabeça para trás.
    ㅤ Enquanto a jovem batia cabeça para tentar resolver seu caso impossível, o delegado da polícia saía de sua sala, pouco adiante da mesa de Celine, com a clássica expressão ilegível em seu rosto e os pensamentos escondidos atrás de tantos muros que nem o Edward Cullen conseguiria ler.
    ㅤ Mas algo, como uma minúscula fresta, era visível para quem soubesse o ler, ele odiava aquilo, odiava ter que mandar um dos seus para o campo, mas não tinha escolha.
    ㅤ E Celine parecia confiante que conseguiria.
    ㅤ— Ele parece sério —    Ethan murmurou, baixo o bastante para que apenas sua amiga ouvisse.
    ㅤ— Quando que ele não parece? — a jovem respondeu, escutando o som do computador de Ethan, finalmente, abrindo a página em que pedia a senha — Jesus, esse computador é de que século?
    ㅤ Ethan direcionou um olhar fulminante na direção da amiga, por mais que ele achasse tanta graça da situação, quanto ela. Ele definitivamente tinha a hipótese que a Rainha Elizabeth II é mais nova que esse computador.
ㅤㅤ— Deve ser mais velho que o Dean ali — ele apontou para o idoso, que agora tossia, da mesa mais adiante na horizontal deles.
ㅤ ㅤ E foi com o riso saindo de seus lábios, que Celine pegou os papéis da mesa de Ethan e voltou a arrastar sua cadeira na direção do próprio computador velho, suspirando ao ver a pasta de sua nova identidade em cima do teclado.
ㅤ ㅤ Por mais assustador que aquilo ainda fosse, ela podia ser Casey, ela faria dar certo.

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