A vida era pacata. Ora desinteressante, ora sem graça. O chão seco e desértico, rachado pelo sol, era apenas a estrada por onde todos passavam, em Holyhill. Para onde iam ninguém sabe, pois dali ninguém saía. No centro do vilarejo, em uma pequena praça feita de pedras e pedregulhos, com bancos de madeira e alguns cinzeiros velhos, havia um poste alto, com cerca de três metros e meio de altura, e uma espécie de rádio ou megafone em seu topo. O prefeito mandava, duas vezes por dia, às doze horas e às vinte, notícias sobre a região local, mas como era pacata a cidade, e o clima era sempre o mesmo: seco, sem chuva, esturricado e, oh, meu Deus, a terra era seca demais, não tinha o que falar sobre um clima que era sempre igual.
Todos viviam da forma que achavam melhor. Alguns viravam a cara para outros na rua. Outros, sorriam para cumprimentar com um sorriso falso e blasé. Mas neste dia, oh, meu Deus, e que Deus nos proteja, o mal se apossou de Holyhill. Ou talvez sempre esteve presente e só agora deu as caras, como um tamanduá que mostra suas garras de repente. Tudo começou com o noticiário do meio-dia, quando a voz do prefeito Justice, rouca e embargada, soou pelo rádio da praça. Todo mundo simplesmente parou, e ele dizia:
- Notícias recentes. É com muita dor que lamentamos a perda de uma jovem criança. Meus pêsames à família. - Solta uma tosse seca. - O menino foi vítima de um abuso sexual, e logo após foi morto, desovado, e jogado no rio Blood River por volta das dez da manhã. - Pigarreia. - A suspeita é uma mulher de meia idade, branca, e cabelos vermelhos. Voltaremos às oito horas para atualizações.
A baba até escorria pelos lábios e descia em um fio fino pelo queixo de um homem velho. As pessoas começaram a se olhar, e uma mulher disse em um tom estridente:
- Foi você? Você saiu pela manhã e ninguém sabe para onde!
- Eu não! - Respondeu de imediato. - Eu sou homem e ele disse que era uma mulher. Acaso não foi tu?
- Como poderia, se ela tinha cabelos vermelhos e os meus são dourados, não vê? - Rebate.
Começa um burburinho por toda a vila. A ideia de ter uma assassina entre os moradores era assustadora. Oh, meu Deus, proteja nossas crianças deste grande mal.
Um homem de quarenta anos surge arrastando uma mulher pelos cabelos até o centro da praça. A joga contra uma tulha de cascalho, fazendo-a gritar por entre os dentes cerrados.
- É ela! - Esbraveja ele. - Pele branca, meia idade e cabelos vermelhos! É a assassina!
E neste exato momento todos passam a gritar em uníssono: "assassina, assassina, molestadora, assassina!". Ela abriria a boca em sua defesa quando de repente recebe uma pedrada no queixo, e tem quase certeza de que seus dentes ficaram moles. Sua gengiva torna-se vermelha pelo rubro sangue que jorra agora.
- O que faremos? - Alguém indaga.
- Este mostro precisa pagar! - Outro berra.
- Vamos fazê-la pagar, então, pois a lei é nossa - uma moça sugere e todos concordam em tom ameaçador.
A mulher, caída no chão, não entende bem o que está acontecendo, quando sente alguém agarrar os seus cabelos novamente, mas desta vez empurrando sua cabeça para o chão. Ela sente o cheiro da poeira que entra em suas narinas. Seu rosto beija o solo, e uma de suas mãos é esticada para o lado, enquanto outras pessoas seguram seu corpo para não se mover. Ela apenas vê de relance algo refletir a luz do sol em uma cor prateada e cortar o ar no mesmo instante. Seu corpo apenas fica gelado. Não sente dor naquele instante, sequer consegue processar o que aconteceu, apenas sente um fluxo anormal. Soltam o seu corpo e ela tenta se sentar, mas apenas tem um vislumbre de sua mão decepada no chão. Perde o equilíbrio, na tentativa de sentar, e no reflexo de se apoiar, acaba batendo com extrema força o cotoco ferido na terra. Não consegue emitir som, tamanha dor, mas seus lábios tremem sem parar e uma baba espessa escorre. Os moradores começam a rasgar suas roupas, sem se importar com a dor que ela sentia, como se ela merecesse toda mazela e sofrimento imposto ali. Afinal, ela era uma assassina e molestadora, oh, meu bom Deus, e o que ela cometera era imperdoável.
Já nua, a mulher fica de pé, seu semblante está visivelmente desesperado. Ela suplica para a multidão, com os braços erguidos, clamando por socorro e um pouco de ajuda, mas é jogada de um lado para o outro como um saco de panos, até desmoronar novamente no chão. Algumas pessoas lhe jogam pedras. Outras, lhe cospem a face.
A ideia era fazê-la sentir tudo aquilo que ela provocou. Por isso, a arrastaram até o monte de cascalho e a largaram de bruços. O primeiro homem abriu sua calça, e não tinha vergonha por isso, nem por fazer isso em público. O segundo fez o mesmo, porém com estocadas ainda mais fortes e pesadas, para que ela sentisse o que era ser molestada, oh, meu bom Deus, e isso parecia o certo. E assim se seguiu até o décimo sétimo. Ela estava tão ensanguentada, inchada, quase em carne viva, que os outros ficaram com nojo de fazer depois. As mulheres ficavam assistindo enquanto apoiavam seus esposos, filhos e vizinhos.
Mas, meu bom Deus, aquilo não era o suficiente. Não era o suficiente porque ela ainda respirava e seu coração batia. Eles queriam mais, e que Deus nos perdoe. Ninguém sabe quem ao certo surgiu com uma vara, e ela estava besuntada em óleo. A estaca tinha mais de um metro e meio, e era mais grossa que o cabo de uma vassoura. Oh, meu bom Deus, eles enfiaram aquela estaca em seu ânus até não entrar mais, e com certeza aquilo rasgou seu intestino. Ela estava deitada, tão petrificada, e a tarde já caía. Começaram a jogar litros de álcool puro sobre ela, e alguém surgiu com uma tocha, sim, meu Deus, uma tocha, e atearam fogo nela, como se faz em uma lareira. Talvez ela já quisesse estar morta antes, mas aquilo, oh, céus, aquilo foi terrível. Seu corpo carbonizou por completo e as labaredas clarearam a praça durante a noite. Alguém se lembrou de que ela também havia jogado o menino, pobre vítima, nas profundezas do rio Blood River. E assim decidiram fazer com ela. A arrastaram pela vara, ainda presa, por alguns metros até o píer sobre o rio. Já estava morta, era inegável, mas ainda assim o fizeram. Lançaram seu corpo naquele rio de águas escuras, para finalizar tudo. Todos permaneceram por alguns segundos olhando para a correnteza, quando a voz do prefeito, que saía do rádio, ecoou. Era o anúncio das oito, e ele dizia:
- Senhoras e senhores, felizmente conseguimos indentificar a mulher que molestou e matou o garotinho que noticiamos mais cedo. Ela já foi detida e confessou o crime. Não precisam se preocupar, povo de Holyhill, está tudo sob controle. Voltaremos amanhã com as notícias locais.
Alguns olhavam para uns e outros. Não tinha volta. Não tinha o que fazer. Alguns enlouqueceram e se jogaram da ponte. Outros se tornaram abusivos com suas famílias. E o resto preferia fingir que nada aconteceu. E foi assim, oh, meu amado Deus, e que Deus nos perdoe, que o mal se apossou de Holyhill.
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Blood River
Mystery / ThrillerCoisas estranhas começam a acontecer em sete cidades vizinhas que são cruzadas por um um rio nesta coletânea de contos. P.S.: Este livro foi escrito em 2020 durante a quarentena, eu estou apenas postando o resultado disto