#3 Chester - Abominável mundo novo

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   Havia acabado de desligar a ligação, revirando os olhos. Teria um longo dia de trabalho amanhã. Tom trabalhava na vigilância sanitária em Chester, e acabara de receber um chamado para averiguar as condições precárias de trabalho em um frigorífico, logo no dia de natal. Sua mãe havia acabado de tirar uma travessa de macarrão com queijo do forno, e o cheiro era divino, de dar água na boca. Na mesa estava posto um peru, bem no centro, corado e vistoso, entupido de recheio, e ao seu lado havia uma garrafa de vinho tinto seco. Sua esposa voltava da cozinha carregando pratos de vidro, talheres e taças cristalinas. Antes que possam se sentar, os três dão as mãos ao redor da mesa, formando um – quase – círculo. Como de costume, todos os anos Tom puxa a oração, ele sempre pensava que isso tinha a ver com ele ser o único homem da família ou algo assim.

    – Senhor Jesus – inicia, fechando os olhos em respeito –, obrigado por todas as graças que o senhor nos concedeu, obrigado por cada refeição, obrigado por nos dar um teto seguro, por estar sempre presente em nossas vidas, e por todas as bençãos. – Suspira. – Amém – conclui, e ambas repetem com ele.

    Ao abrir seus olhos, percebe sua visão um pouco turva, sente um desequilíbrio e cai sentado na cadeira, levando as mãos ao rosto. Sua esposa pergunta se está tudo bem e ele balança a cabeça algumas vezes para cima e para baixo, com desconforto. Ao olhar ao seu redor, percebe que tudo está preto e branco. Na verdade, é uma escala gradual de cinza, e não há nada colorido. Ergue as sobrancelhas, os olhos levemente arregalados ao olhar para a mesa. Por algum motivo, desconhecido até então, há uma pessoa em cima da mesa. Ela está posta sobre uma bandeja, com a barriga gorda para cima, as pernas encolhidas e os braços junto ao corpo, que está nu, e besuntado de gordura, além de estar sem cabeça.

    – Você quer o peito? – Sua mãe pergunta.

    Ele olha para ela, desnorteado. Balança a cabeça compulsivamente.

    – Eu... – balbucia – eu não estou me sentindo muito bem.

    Sua esposa arranca um dos braços da pessoa, colocando no próprio prato. Tom se levanta e vai correndo até o banheiro, abrindo a tampa do vaso e vomitando. Vomita tanto que sua garganta começa a arder. Um suor frio desce pela sua testa. Ele joga um pouco de água no rosto e lava a boca, sentindo-se empalidecido. Se arrasta até seu quarto, tira os sapatos e rasteja para debaixo dos lençóis.

    – Está tudo bem? – Sua mulher pergunta da porta do quarto.

    – Eu irei ficar. – A voz embargada. – Deve ser apenas uma gripe.

    O despertador começa a tocar às seis horas da manhã. Tom o desliga, ainda de olhos fechados. “Foi tudo um sonho”, convence a si mesmo, “não passou de um sonho”. Mas, ao abrir os olhos, percebe que tudo ainda possui aquela tonalidade acinzentada. Seja lá qual universo paralelo for esse, ele provavelmente é derivado do inferno.

    Às sete horas ele sai de casa, mal havia tomado café da manhã, apenas comido uma maçã, afinal a galeira estava cheia de cadáver humano. Todas as manhãs ele encontrava seu vizinho passeando pela calçada com o seu labrador, e hoje não seria diferente, mas... sim, o seu vizinho está lá, segurando aquela coleira azul-marinho, porém há um homem pelado com a coleira em volta do pescoço, e ele anda sobre os quatro membros, exatamente como um canino faria, inclusive indo cheirar seus pés.

    Tom entra em seu carro, confuso, mas não exita por nenhum milésimo de segundo, dá partida e segue a estrada. Ao que consta, o frigorífico Meet ‘n Beef, que ele vai fazer a vistoria, é ao norte da cidade, quase na divisa entre Chester e Pointless. Ele não deixa de notar alguns outdoors pelo caminho, como por exemplo uma propaganda do petshop Suzey, onde há uma foto de um humano de cabelos cacheados que estão sendo cortados por uma tesoura, ou uma enorme placa do fastfood Fast Brunch, onde há uma frase escrita “venha provar nosso novo filé de vitela” sobreposta a foto de uma criança pequena. Tom Hanscom sacode a cabeça. Alguém deve estar pregando uma peça nele, só pode.

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