Chris Sheldon voltava do celeiro carregando um balde de leite, cheio pela metade. Suas botinas de couro estavam sujas de lama e feno. Ele vestia um macacão jeans com uma camisa xadrez por baixo. Inspirava o ar puro daquela cidadezinha rural enquanto voltava para casa. Coloca o balde sobre a mesa e lava as mãos na pia. Gostava dessa tranquilidade que Farm exalava, e sentia-se satisfeito por ter saído do tumultuo que era Brainstorm, uma cidade cheia de carros e movimentos, e ido para aquela zona rural onde a natureza podia ser apreciada. Era disso que ele precisava, e assim se sentia feliz. Sheldon era empresário, sócio de uma empresa de tecnologia avançada, mas vendeu sua parte e abriu mão de tudo para ter uma fazenda e viver na roça. Agora já tinha seus cinquenta e tantos anos, viúvo, e vivia em Farm a aproximadamente sete ou oito anos.
Da janela da cozinha ele avista o velho Hagrid vindo pela estrada de barro, dirigindo sua caminhonete velha, buzinando enquanto se aproxima. Hagrid já era idoso, isso ninguém poderia negar, e a vida calejada deixava sua aparência ainda pior. Nunca tivera estudo e sempre trabalhou na fazenda da família – e quando digo sempre, é sempre mesmo. Ninguém sabia ao certo sua idade, talvez fosse pré-histórico.
Sheldon sai de casa, enxugando as mãos na roupa, o que não adianta muita coisa, pois sua roupa estava imunda. Ele fica parado na sacada esperando o velho Hagrid vir até ele. O homem parece atordoado.
– Bom dia, Hagrid – acena.
– Sinhô, eu num sei o que aconteceu. – Ele eleva as mãos à cabeça. – Num sei se foi raposa, cachorro, ou o cabrunco, comeu mias oveia tudo. Hoje num tinha mai niúma, só os pêlo rancado no chão e uns rastro de sangue.
– Que estranho. – Indaga. – Você não ouviu nada?
– O que eu pudia uví? Meu zuvido num capenga muito bem, o sinhô sabe. Mas no aprisco tinha um mau odor de coisa podre, paricia mai carniça. – Explica. – E parece que a fazenda ao lado perdeu todas as galinha. O dono disse que era uma cacarejada danada, pena pa tudo que é lado... Mai ele disse que viu uma coisa peluda que num sabe o que foi, tava escuro na hora.
Sheldon ouve aquilo com estranheza, já tinha ouvido falar vagamente sobre coisas assim na região, mas nunca tão próximo dali. Ele coça o queixo, a barba rala por fazer.
– Nor tava falano pa fazer uma emboscada e pegá o bicho de jeito. O sinhô tem aquela espingarda e eu tenho mio fuzil véio.
Chris achava graça um homem daquela idade o chamando de senhor.
– Mas eu não tenho animais de crianção, apenas a minha vaca – dizia.
– Mai nor num vamo ficar ispirano o bicho aqui não, sinhô. Vamo é caçar ele, entrar den’ da mata.
Ele sabia que não era uma boa ideia. O animal ainda era desconhecido e eles não sabiam com o que estavam lidando, não dava para simplesmente enfrentá-lo às cegas. Podia ser uma raposa, ou algum cachorro selvagem, ou mesmo um cachorro doméstico e eles estariam impressionados com a situação. Apesar da ideia ruim, Sheldon aceita ir caçar o bicho, seja lá o que ele for. Entra em sua casa e pega a espingarda sobre a lareira, indo buscar os cartuchos. Pega doze e enfia no bolso do macacão jeans.
– Ainda está cedo, Hagrid. Podemos sair umas sete horas, quando estiver tudo escuro, o que acha? – Diz ao voltar para fora.
– Então io volto lá pas sete – afirma.
Após Hagrid partir em sua caminhonete velha, Chris Sheldon volta para dentro de sua casa. Ele passou horas pensando em que animal selvagem poderia ser aquele, divagando enquanto sentia calafrios.
Era por volta de cinco e meia da tarde, ele estava organizando alguns panfletos de uma campanha contra a reprodução massiva de animais, colocava-os empilhados em uma gaveta, mas um arrepio na espinha lhe causava a sensação de estar sendo observado. Vez ou outra olhava para a janela, vazia do outro lado. Sentia um odor nefasto de carniça. Mas nada lhe preocupou mais do que ouvir mugidos agoniados e inquietos de Beladona. Sua vaca vivia em um celeiro, por ora sozinha, tinha sido resgatada de uma fazenda leiteira, cujo o dono havia sido denunciado por maus tratos e lavagem de dinheiro. Beladona foi encontrada em cubículo, sequer conseguia se abaixar, pois o espaço não lhe permitia, então passava o tempo todo em pé, embora suas patas já estivessem fracas e atrofiadas. Sheldon chega ao celeiro e a encontra inquieta, o sol já estava se pondo, Beladona andava de um lado ao outro e bufava. Chris se aproxima, colocando a mão sobre a cabeça do animal para tentar acalmá-la.
– Shhh... O que aconteceu, hã? – Ele sussurrava. – Está tudo bem, companheira.
Ele repete isso algumas vezes, como se tentasse convencer também a si mesmo. Sheldon se vira para desligar a luz do celeiro, fechar as portas e ir para casa, quando ele avista, do lado de fora e sob a luz do entardecer, uma criatura pilosa, de pelos escuros e densos. Parece um cachorro, mas anda sobre duas patas, porém seu corpo é curvado para frente, e é sem dúvida maior que um cachorro normal, provavelmente maior do que qualquer canino que ele já viu. Seus olhos eram como neblinas enevoadas, seu focinho era úmido, lustroso, sua boca era cheia de dentes pontiagudos enormes, e escorria uma baba espessa por aquela língua pendurada para fora.
Se Chris Sheldon pudesse descrever aquilo, ele diria que parece um lobo gigante que cruzou com uma hiena sanguinolenta, pois com certeza aquilo era um híbrido de alguma coisa, não havia como aquele bicho fazer parte da natureza, muito menos ser natural. O lincantropo abre a mandíbula algumas vezes, e mesmo estando alguns metros distante, Sheldon consegue sentir o cheiro fétido daquele hálito mal cheiroso. O animal estava olhando para ele, e seus olhos pareciam despender de um raciocínio surpreendente, como se fosse capaz de pensar claramente e articular situações complexas. Era intimidador, ao mesmo tempo confiante e sábio, e isso o assustava.
Sheldon anda de lado, esticando a mão para pegar um ciscador na parede. Ele se põe de frente à Beladona, segurando sua nova arma. A espécime de lobisomem se coloca sobre quatro patas, andando sorrateiramente, com uma maestria, lembrando uma sensualidade felina – se não fosse pelo fato de ser, ou parecer, um canino. O animal olhava fixamente para o fazendeiro, como se estivesse a estudá-lo. Aquilo o aterrorizava, causando pavor e pânico, nunca havia sentido tanto medo na sua vida. Ele sequer se dá conta de que um líquido quente começava a escorrer pelas suas pernas, molhando a parte froltal do macacão, deixando encharcado. Suas mãos tremiam e seus dentes batiam compulsivamente um contra o outro.
O medo o fez agir, e ele não esperou ser atacado primeiro, enfiou as garras do ciscador entre as costelas do licantropo, que em um reflexo, deu uma patada em suas pernas. A força parecia a de um touro. Sheldon caiu, puxando seu ciscador de volta. Ele ouve o barulho de motor, era a caminhonete de Hagrid. O velho passa a chamar seu nome, em frente a casa, mas Chris permanece calado. Não dá, ele não conseguiria emitir nenhum som, sente-se completamente paralisado.
O animal começa a uivar de dor, pelo golpe inesperado de outrora. Pouco tempo depois há um disparo. Era o velho Hagrid entrando no celeiro, disparando sua Springfield, e o tiro acerta as costas do canino, mas Hagrid não tem tanta sorte. No instante seguinte ele é levado ao chão, o bicho sobe em cima dele com suas patas pesadas, e abocanha seu rosto. Sheldon assistia a tudo, paralisado, sequer tinha notado suas pernas quebradas ainda, tamanho o horror.
O animal havia estraçalhado metade da cabeça do velho, até dava para ver a massa cinzenta escorrendo para fora em meio àquele sangue rubro. Um de seus olhos havia sido comido, enquanto o outro estava pendurado para fora pelo nervo óptico. A fera parou depois de um tempo, virou solenemente a cabeça para Sheldon, lhe lançou um olhar baixo de tristeza e reprovação, e saiu pelo celeiro. Chris não pensava, não raciocinava, sequer conseguia, estava paralisado dos pés à cabeça, e assim iria permanecer.
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Blood River
Mystery / ThrillerCoisas estranhas começam a acontecer em sete cidades vizinhas que são cruzadas por um um rio nesta coletânea de contos. P.S.: Este livro foi escrito em 2020 durante a quarentena, eu estou apenas postando o resultado disto